terça-feira, 16 de março de 2010



16 de março de 2010 | N° 16276
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Cenário desigual

Assisti ontem a um duplo ato de tortura. Ante a circunstância indiferente, uma mulher puxava um carro de lixo, que devia ter três vezes o seu peso. Ao seu lado corria uma menina de uns quatro anos, tentando acompanhá-la.

Caía no mundo um calor de trinta e poucos graus, mas ninguém se importava com elas. Eram como uma parte indispensável da paisagem, ainda que marcada de crueldade. A menina chorava e a mulher lhe dirigia umas palavras entrecortadas de cansaço.

Por que chorava a menina?

Chorava porque seus pés descalços tocavam no asfalto quente. Chorava porque estava exausta e tinha fome. Chorava porque sua mãe, bem ali ao seu lado, não lhe dava uma atenção senão distante.

E por que sua mãe se mostrava distante?

Talvez porque não tivesse mais força para carregar o peso que seus pobres músculos suportavam. Talvez, tanto quanto a menina, tivesse fome e sede. Talvez porque a assombravam outras preocupações ancoradas em casa.

A mim, transeunte da cena, dentro de um táxi, o que mais impressionava era a indiferença geral. Era uma insensibilidade refinada, como se não houvesse nem mãe nem filha prisioneiras de seu suplício. Pedestres distraídos, um policial, carros de fino trato revelavam-se alheios ao espetáculo de impiedade.

E por que ocorria esse espetáculo?

Ocorria porque este é um país desigual e cenas como a que descrevi fazem parte do nosso cotidiano. A escravidão não foi ainda abolida e há uma classe eternamente prisioneira de sua desesperança.

Não é difícil identificá-la. Mora em ruas e praças, pontes e viadutos. Vive em frágeis barracos sitiados de miséria, desamor, promiscuidade, órfãos de água, luz, esgotos, cuidados de saúde, paz, segurança, transportes, pródigos em violência, drogas, desarmonia, fome, doença.

Mas se alguém me perguntasse o que aprofunda tamanho abismo, o que torna mãe e filha reféns sem culpa da própria fragilidade, eu não hesitaria em apontar a grande chaga que alarga a exclusão e a injustiça. Em pleno ano de 2010, um em cada 10 brasileiros jamais frequentou uma escola.

Uma gostosa tereça-feira para você. Aproveite o dia

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