sábado, 20 de março de 2010



21 de março de 2010 | N° 16281
DAVID COIMBRA


Velhas manhãs de domingo

No domingo de manhã bem cedo, se por ventura já acordei, quase posso ouvir certo som do passado: o baque produzido pelas travas da chuteira chocando-se contra a pedra da calçada, clec-clec. Era o som que ouvíamos em tantas das manhãs daqueles nossos tempos de guri. Na noite anterior havíamos combinado:

– Às sete, no monumento.

O monumento parecia uma miniatura do edifício do Congresso. Uma escultura supostamente moderna plantada à entrada dos prédios da Coorigha, em frente à atual borracharia do Brazinha. Homenageava a Revolução de 64. Depois da redemocratização foi substituído por uma menos ideológica e mais útil guarita de segurança.

Antes mesmo das sete estávamos diante do tal monumento, meio fardados. Meio porque saíamos de casa dentro dos meiões brancos e dos calções pretos, mas não com as famosas camisas do Huracán. Estas, quem as distribuía era o Edu Brittes, mais tarde, no vestiário.

Alguns poucos, pouquíssimos, iam arrastando os chinelos até o Alim Pedro, as chuteiras, preservadas do desgaste, penduradas na nuca pelos cadarços amarrados nas pontas. A maioria, porém, eu incluído, fazia questão de se apresentar calçado com as chuteiras do jogo, donde o ruído que fazíamos ao caminhar, clec-clec.

O barulho seco, misturado às nossas vozes, se propagava pelo ar fresco da manhã de domingo. Todos os vizinhos do entorno deviam ouvir, talvez se sobressaltassem no aconchego de suas camas. Natural: àquela hora, a cidade dormia, não havia carros passando, não havia gente circulando, o Armazém do Seu Zequinha ainda não abrira, ninguém comprava pão e leite para o café.

Quando atravessávamos a Plínio Brasil Milano, rumando para o Alim Pedro, éramos soldados partindo para a guerra. O sentimento de corpo, de pertencer a um grupo que vai enfrentar outro grupo, de um coletivo que vai lutar por um objetivo comum, de saber que todos ali contam com você, assim como você conta com todos, esse sentimento nos enchia de orgulho, e o orgulho nos enchia de excitação, e a excitação nos fazia desbordar de alegria.

Fazíamos as brincadeiras brutas que os guris fazem entre si, este caçoava daquele, outro contava vantagem, todo mundo ria, e o clec-clec das travas da chuteira socando a pedra dura era o som das grevas dos guerreiros antigos em marcha para a batalha, era o clangor das armas colidindo umas contra as outras, era o eco da nossa amizade de infância, que, como toda amizade de infância, é eterna.

A recordação das nossas velhas manhãs de domingo envolveu-nos em uma nuvem de saudosismo agora há pouco, na noite de quinta passada, quando sentamos para beber um chope inédito, eu e meus amigos de infância. Na verdade, um chope histórico.

Três meses antes, também numa quinta-feira, véspera do feriado de Natal, estávamos no mesmo bar do Atílio, na mesma mesa sobre a calçada da Fernando Gomes, cada um diante do seu chope gelado com dois dedos de colarinho, e o Jorge Barnabé, antigo ponta que era rápido como um guepardo, que tinha um chute preciso e seco como um tapa de mulher rejeitada, pois o Jorge Barnabé queixou-se de um aperto no peito.

Brincamos como brincávamos quando guris: ele estava era sentindo a presença da sogra, que fora morar com ele.

O Jorge riu, ameaçou contar a Pior Piada do Mundo, que ele, como sempre, tenta contar e nós, como sempre, não deixamos. A noite seguiu. Voltamos para casa.

O Jorge estava sentindo um infarto.

Dias depois, foi internado. Os médicos serraram-lhe o osso esterno, abriram-lhe o peito, tiraram-lhe o coração para fora do corpo e o consertaram.

Passados três meses, nesta última quinta-feira, o Jorge provava o primeiro chope da sua segunda vida. Normal que nos sentíssemos um pouco nostálgicos. A nossa amizade, afinal, não vem de hoje. Vem das brumas da infância. Do tempo das amizades eternas.

Nenhum comentário: