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sábado, 27 de março de 2010
27 de março de 2010 | N° 16287
CLÁUDIA LAITANO
Perelman e o subsolo
Durante pouco mais de 40 anos, entre a emancipação dos servos, em 1861, e a pré-revolução, em 1905, a Rússia viveu uma explosão de criatividade e excelência literária.
De Almas Mortas, de Gogol, aos últimos contos de Tchekhov, que morreu em 1904, foram tantas obras-primas, que o sujeito determinado a passar a vida inteira apenas “lendo os russos” pode morrer tranquilo: terá entrado em contato com algumas das maiores obras já produzidas pelo espírito humano, em abrangência e profundidade.
Quem coloca na cabeceira da cama Guerra e Paz, Anna Karenina e A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, e mais Crime e Castigo, Memórias do Subsolo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov, de Dostoeivski, pode correr algum risco de soterramento literário no meio da noite, mas de tédio ou pobreza de espírito não morre.
À primeira vista, parece quase absurda tamanha conjunção de talentos em uma mesma época e em um mesmo território, mas vamos combinar que a história deu uma mãozinha, criando o ambiente claustrofóbico que acabaria desembocando na revolução de 1917 – não sem antes deixar sua marca em todos os grandes autores, alguns de maneira assustadoramente profética.
A literatura russa é cheia de pressentimentos e predições, angústias existenciais e dramas éticos, e cada um desses mergulhos aos porões da alma humana poderia se espelhar nos acontecimentos históricos que, naqueles anos, já preparavam a chegada do século 20.
Pois eis que, em pleno 2010, surge um personagem real que parece saído de um livro de Dostoievski – mais especificamente de Memórias do Subsolo (1864), obra-prima que influenciaria autores como Kafka, Beckett e Camus, entre outros.
Nós, os leigos, provavelmente jamais teríamos tomado conhecimento da existência do matemático Grigory Perelman, 44 anos, se ele não tivesse recusado o prêmio de US$ 1 milhão oferecido pelo Instituto Clay de Matemática por ter resolvido, em 2003, a Conjectura de Poincaré, formulada pelo matemático francês Jules Henri Poincaré, no início do século passado, e até então sem solução.
Considerado um dos maiores gênios vivos do mundo, Perelman explicou esta semana por que não teve nenhum interesse em ir receber a bolada. Sem abrir a porta de seu apartamento infestado de baratas, em São Petersburgo (a cidade em que se passa Memórias do Subsolo), Perelman despachou o jornalista que tentava entrevistá-lo com a seguinte frase: “Tenho tudo que preciso”. Uma vizinha contou que ele tem em casa apenas uma mesa, um banquinho e uma cama com um lençol deixado ali pelos antigos donos.
Como Perelman, o narrador do livro de Dostoievski é um esquisitão que diz verdades perturbadoras em meio ao delírio misantropo. O personagem atribui ao “excesso de consciência” a dificuldade de viver como os homens comuns (os que seriam capazes de virtualmente qualquer coisa por US$ 1 milhão): “Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto.
Agora vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem”.
Dostoeivski pode não ter “previsto” Perelman, mas seu anti-herói preparou terreno para todos os esquisitões que, saindo da norma, revelam não apenas a sua loucura, mas um pouco das nossas também.
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