terça-feira, 23 de março de 2010



23 de março de 2010 | N° 16283
MOACYR SCLIAR


O sonho açoriano

Em 1747, foi divulgado nas Ilhas dos Açores um edital assinado pelo rei de Portugal anunciando estímulos para aqueles que quisessem emigrar para o Brasil. Havia para tal bons motivos: os Açores viviam uma crise na produção de cereais, e a fome era uma ameaça muito real.

Os estímulos consistiam em uma quantia em dinheiro, uma espingarda, ferramentas, sementes, alimentos, duas vacas, uma égua, alguma terra (“um quarto de légua em quadro”, expressão que deu título ao belo livro de Luiz Antonio de Assis Brasil).

Mas a oferta não tinha só razões humanitárias: Portugal precisava ocupar um território pouco povoado e cobiçado pelas potências europeias da época. Caridade de um lado, interesse de outro.

O anúncio do rei foi bem recebido. Em setembro daquele ano já se haviam inscrito 2.585 pessoas prontas para emigrar, um número, para a época, apreciável. E assim vieram os 60 casais que deram a Porto Alegre a sua primeira denominação: Porto dos Casais.

Podemos imaginar o estado de espírito com que estas pessoas embarcavam nos veleiros para a longa e incerta travessia através do Atlântico. Era, decerto, uma mistura de sentimentos: a tristeza de deixar para trás a terra natal, o temor diante do desconhecido, mas, sobretudo, a esperança.

Esperança era algo que fazia parte do kit de sobrevivência dos açorianos e de todos os outros imigrantes, alemães, italianos, eslavos, sírios, libaneses, judeus. Precisavam acreditar que a vida deles aqui seria melhor.

O fato de serem casais, famílias, certamente ajudava muito. Tratava-se de um projeto de vida compartilhado. Se o marido fraquejava, a mulher animava-o, e vice-versa; e, a qualquer momento, ambos poderiam olhar os filhos e lembrar que o esforço estava sendo feito por eles – e por seus descendentes porto-alegrenses.

O Brasil de hoje é um país contraditório. De um lado, as paisagens deslumbrantes, suas riquezas naturais, o progresso econômico; de outro, notícias alarmantes (violência, desastres naturais) criando um clima de pesadelo. Cabe a pergunta: será que Porto Alegre corresponde ao sonho dos açorianos e de outros imigrantes?

Estamos falando de uma cidade brasileira; e, de modo, geral as cidades brasileiras, mesmo aquelas em que a natureza é pródiga, estão longe de uma visão paradisíaca:

ruas sujas e esburacadas, trânsito congestionado, violência (será que as espingardas fornecidas aos colonos já eram uma antecipação disso?), gente dormindo sob pontes e viadutos. No documento real, era mencionado um brigadeiro que “porá todo o cuidado em que estes novos colonos sejam bem tratados, e agasalhados”. Não é preciso dizer que esse brigadeiro faz falta – e que teria muito trabalho por aqui.

Apesar disso, o porto-alegrense é uma pessoa amável, ainda que não exuberante, uma pessoal cordial, disposta a ajudar os outros. Isto a gente observa, por exemplo, nas entrevistas, que quase sempre terminam com o entrevistado sorrindo – mesmo depois de ter falado de um problema grave.

Nascido aqui, e aqui tendo passado minha vida, posso garantir: apesar de tudo, é bom ser porto-alegrense. Feliz aniversário, Porto Alegre. Nas tuas ruas, nas tuas praças, nos teus habitantes, sempre haverá lugar para o sonho.

O simbolismo dos nomes. Não é curioso que Alexandre Nardoni tenha trocado uma Ana Carolina por outra Ana Carolina? Nas profundezas do psiquismo humano, há mais mistérios do que podemos imaginar.

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