segunda-feira, 22 de março de 2010



Editorial
22 de março de 2010 | N° 16282


PORTO ALEGRE 238 ANOS

Um bom porto, um bom fimPara celebrar o 238º aniversário de Porto Alegre, dia 26 de março, Zero Hora convidou seis ilustres moradores para escrever sobre os bairros onde moram, passaram a infância ou simplesmente o lugar pelo qual se apaixonaram. O escritor Charles Kiefer apresenta na série Mostre o Seu Bairro com é a sua relação com o Bom Fim

Uma cidade, um bairro, uma rua, um desvão de escada não são feitos apenas de cimento e vidro, praças e casas, árvores e asfalto, degraus e quinquilharias, mas também, e principalmente, de lembranças, desejos e ilusões. As coisas vivem num deplorável estado de coisas.

Somos nós que lhes damos a alegria do sentido. Uma cidade, um bairro, uma rua, um desvão de escada podem alcançar, pelo nosso olhar, pelo nosso sentir, a transcendência que têm um figo maduro, um colibri assustado, uma criança ferida. E as coisas transcendidas podem nos ajudar a viver com mais serenidade, com maior ternura e humanidade.

Vivo na fronteira dos bairros Independência e Bom Fim, mas a minha tendência, em tudo, e sempre, é descer a lomba, pela Miguel Tostes. De manhã, ministro oficinas na Livraria Palavraria, na Vasco da Gama.

Marta e Sofia são assíduas frequentadoras da Espaço Vídeo, e eu me abasteço de pão camponês e de croissants nesse cantinho de Paris que é Bolangerie Carina Barlett. Apaixonado por frutas, percorro o bairro atrás de cajus, araticuns, romãs, carambolas e outros exotismos da flora nordestina, amazônica e chilena.

Quando cheguei aqui em Porto Alegre, em 1982, não tinha dinheiro para alugar um apartamento num bairro de classe média, mas fui generosamente convidado a morar com o professor Mario Arnaud Sampaio e sua esposa, Zelia Dendena, na Felipe Camarão.

Lá fiquei por dois meses, “fazendo caixa”. Ia ao trabalho, na Editora Mercado Aberto, na Zona Norte, a pé, todos os dias de madrugada, para economizar com passagens. Um dia, diante de meu ar deprimido, Roque Jacoby, meu empregador, perguntou-me à queima-roupa:

– O que tu tens, guri?

– Saudade – eu respondi.

E assim, auxiliado por ele – que além de me dar um bom empréstimo, que paguei em muitas parcelas, sem juros, e servir-me de fiador –, aluguei um apartamento na Avenida São Pedro com Bahia. Eu trouxe a família de Três de Maio e comecei a minha vida profissional na “mui valerosa” capital. “Valerosos” foram Sampaio e Jacoby, que me estenderam a mão. Sem eles, meu fim seria o retorno à terra natal, ou a partida em busca de outra terra.

Nunca esqueci as ladeiras do Bom Fim, as velhas árvores, o ar de bairro europeu. Marta, que me deu Sofia, conseguiu um apartamento na fronteira do bairro e nos mudamos para cá, há oito anos. Ela, que não se permite raízes, quer partir; eu quero ficar.

Camponeses são poços. É mais fácil transferir um bairro que um poço. No que me cabe, o Bom Fim é uma terra amigável onde claudicar os passos, um lugar tranquilo onde descansar os ossos. Só me arranca daqui o Caronte, com sua barca inevitável.

CHARLES KIEFERA

história

Conhecido como Campo da Várzea, teve o nome alterado para Campo do Bom Fim, em função da construção da Capela Senhor do Bom Fim, concluída em 1872. Após a abolição da escravatura, muitos libertos se abrigaram na região, que passou a ser chamada popularmente de Campo da Redenção.

Na segunda década do século 20, famílias judaicas chegaram à Capital e se instalaram nas imediações da Avenida Bom Fim, atual Avenida Osvaldo Aranha.

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