sexta-feira, 19 de março de 2010



19 de março de 2010 | N° 16279
DAVID COIMBRA


O mendigo da Padre Cacique

Durante certo tempo tentei compreender a lógica do comportamento de um cara que fica esmolando debaixo de uma sinaleira na Padre Cacique, cerca de 50 metros depois do Beira-Rio. Obtive a resposta dias atrás, graças a algo que ele mesmo fez.

O mendigo, esse, ele é um tipo alto, magro e parece gozar de boa saúde. Não age como a maioria dos pedintes de sinal vermelho. Com grande parte destes o que acontece é o seguinte: você para com seu carro à espera da luz verde. Vai permanecer ali por uns 50 segundos. Em tese, 50 segundos de tédio, você não tem mais nada para fazer a não ser olhar para o semáforo.

Aí aparece um sujeito com duas calotas de carro na mão, monta nas costas de outro sujeito, atira as calotas para o alto e as apara na queda. Em seguida, pula dos ombros do amigo para o chão, corre até a janela do seu carro e pede uma moeda.

Supostamente, promoveu um show com habilidade rara e o deixou embasbacado: “Oh, ele consegue segurar a calota...”. Livrou-o da monotonia e pretende pagamento por isso. Quer dizer: o princípio dele é a recompensa. Por isso, eu, quando o cara deixa cair a calota, não pago.

Bem.

Há outras razões que fazem alguém acreditar ser merecedor de dinheiro ao se postar sob uma sinaleira. Tem um tipo ali na José de Alencar que é manco. Ele vem ondulando com grande espalhafato e não menor velocidade em direção aos motoristas, estende a mão e pede a tal moeda. Ou seja: ele está dizendo que o defeito físico o impede de ganhar a vida pelos próprios meios, o que o obriga a mendigar. Presumivelmente, não tem alternativa.

E existe ainda a solicitação de donativo por mera filantropia: para asilos de velhinhos, para abrigos de crianças abandonadas, para estudantes de pernas longas e minissaias curtas submetidas a trotes pelos veteranos das faculdades. Tudo isso tem lógica.

Mas esse mendigo da Padre Cacique não pede dinheiro: ele o exige. Ordena que os motoristas passem algum e, se lhe é negado, fica de péssimo humor, sai esbravejando. As mulheres são ofendidas. Já vi algumas serem ameaçadas.

Então eu especulava: o que será que se passa na cabeça deste homem para ele crer que as outras pessoas têm dever de lhe dar dinheiro? Não conseguia compreender, até que, um dia, fui abastecer o carro num posto da Padre Cacique. O mendigo estava lá, na loja de conveniência, achacando os clientes, incomodando-os. O gerente da loja pediu que se retirasse. Ele disse que não ia sair e gritou:

– O país é livre!

Fez-se a luz. É uma questão ideológica. O país é livre; logo, ele pode fazer o que quiser. Essa é a liberdade que proporciona o Estado brasileiro. Não é a liberdade de poder caminhar pelas ruas em segurança, essa liberdade ninguém tem.

Mas qualquer criança tem liberdade de errar pelas esquinas até de madrugada sem que ninguém tente recolhê-la, qualquer grupo protestante tem direito de interromper uma estrada ou invadir um prédio público sem a menor repressão e qualquer rapagão tem a liberdade de constranger o próximo sem ser incomodado. O país é livre, disse o lúmpen da Padre Cacique. E está absolutamente certo.

Nenhum comentário: