quarta-feira, 17 de março de 2010



17 de março de 2010 | N° 16277
DAVID COIMBRA


As artes dos imperadores

A pior censura, dizem, é a autocensura. Bem pouco tempo atrás, a pratiquei. Ou pior: censurei um texto clássico, velho, de dois mil anos, com medo da pudicícia dos leitores do século 21. Aconteceu quando ia escrever sobre o imperador romano Tibério.

Qualquer um pode construir uma imagem nítida de como era Tibério: era o Peter O’Toole do filme “Calígula”. Foi o mais verossímil de todos os Tibérios desde que o próprio morreu, no século I.

Alguns atores dão cara a personagens. Cleópatra era Elizabeth Taylor, com sua franjinha negra e aqueles olhos lilases dela.

O cínico detetive Philip Marlowe, criação do grande Raymond Chandler, não poderia ser outro que não Humphrey Bogart.

Capitão Rodrigo? O Tarcísio Meira, claro, se bem que Dom Pedro I também era Tarcísio Meira, o que me leva a concluir que Dom Pedro I era o Capitão Rodrigo.

Então, quer imaginar Tibério? Imagine o O’Toole do filme, uma criatura obscena ingressando no último quadrante da existência, o rosto deformado pela sífilis, levando uma vida de devassidão e violência na ilha de Capri, na qual se refugiou depois da morte de seus dois filhos.

Onde os realizadores do filme se inspiraram para tecer um Tibério tão perfeito? No mesmo texto que censurei: “A Vida dos Doze Césares”, única obra que sobreviveu do historiador Suetônio, ele também um homem do primeiro século da Era Cristã.

O livro é precioso e preciso em pormenores da vida privada dos Césares. Estabeleceu os fundamentos das obras de diversos historiadores nos 20 séculos que o seguiram. Os leitores modernos, portanto, não deviam ser privados de sua análise. Mas ainda assim tive medo de escandalizá-los, que fazer?

Agora não mais.

Depois de tomar conhecimento das orgias promovidas por outro imperador, o centroavante Adriano, depois de ser informado por sites e jornais que nas festas do César do Flamengo mesclam-se seres humanos de todos os sexos, que lá ocorrem até intercursos entre anões e asnos, depois de me inteirar disso tudo, creio que posso recortar aqui um naco do texto de Suetônio, para que os leitores compreendam que a opulência em geral leva à luxúria, e que o gosto pela morbidez é antigo como o mundo. Escreveu assim o historiador dos imperadores de Roma:

“No seu retiro de Capri (Tibério) mandou preparar um teatro dos seus desbragamentos secretos. Ali reuniu, trazidos de toda parte, raparigas, favoritos e inventores de complexos monstruosos a que ele chamava spinthrias, para que, enlaçados numa tríplice cadeia, se prostituíssem mutuamente diante dele e, deste modo, com estes espetáculos, seus apetites adormecidos pudessem reanimar-se. (...)

Cobriu-se de outra infâmia maior ainda e mais ignóbil, na qual custa a crer-se. Tibério, ao que parece, ensinava crianças de tenra idade, as quais costumava denominar seus “peixinhos”, a brincar entre suas coxas, enquanto nadava, e a pegar seu órgão genital com a língua e com os dentes.”

Vou parar por aqui. Na sequência, Suetônio conta o que Tibério promovia com “crianças já fortes, mas ainda não desmamadas”, e aí acho que já é demais.

Vou censurá-lo mais uma vez, e só o libero quando me inteirar das façanhas de algum outro centroavante que, como o Imperador, seja tão perito na arte de fazer gols quanto nas artes de fazer artes.

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