segunda-feira, 10 de março de 2008



10 de março de 2008
N° 15536 - Luiz Antonio de Assis Brasil


Palavras (27)

Acostumar-se - Aquele homem acostuma-se às primeiras pintas que lhe aparecem no dorso das mãos. Acostuma-se aos alçados degraus das escadas, a cada dia um pouco mais penosos. Acostuma-se a pôr o jornal mais distante dos olhos, a respirar com mais calma, a perdoar a ignorância e, até, a insensatez.

São esses pactos com a vida a melhor dissimulação da finitude humana.

O sono - Nada convence aquele homem de que o dia seguinte irá transformá-lo. Aquele homem pensa ser o mesmo de ontem. Entretanto, algo de pequeno aconteceu-lhe na noite passada, algo quase imperceptível - mas inexorável e único, que transtornou o seu destino.

Aquele homem acostuma-se às minúsculas fatalidades que encaminham sua existência para o seu natural fim.

Geografia - O dia que passa é um gato que dorme ao sol do verão.

É uma árvore sacudida pelo vento do outono.

O dia que passa é um riacho que corre sem pressa para o mar. Por mais lento que seja, o riacho acabará no mar.

Tudo isso a que nos acostumamos - o regato, o outono, o sol, esses movimentos e pausas - é destinado ao esquecimento, incorporando-se às leis do quotidiano.

No entanto, são coisas assombrosas.

Neoclássico - O célebre pintor Louis David passou à história da arte também por seu péssimo caráter.

Sua arte era magnífica, insolente, gélida.

Já velho, ele aponta a bengala para uma obra alheia. Avalia-a perante um discípulo. É uma tarde fria, próxima do Natal. Louis David, desdenha: "Muito escuro... muito claro... a gradação da luz não está bem express...".

Empalidece, deixa cair a bengala.

Tomba.

Alguém, apenas para cumprir a formalidade mortuária, ausculta-lhe o coração.

Louis David, de tão acostumado à arrogância, esquecera-se de seu coração, incapaz de intimidar-se ante a glória.

Conclusão - E nós, nós não acostumamos à nossa própria vergonha.

Nenhum comentário: