terça-feira, 4 de março de 2008



04 de março de 2008
N° 15529 - Liberato Vieira da Cunha


Uma freira no bar

Logo que comecei no jornalismo me mandaram entrevistar um expoente das artes. Foi uma conversa agradável, mas dela lembro uma única frase. À saída, fui apresentado à sua vasta pinacoteca e meu anfitrião deteve-se ante um desenho.

Dizem que é de Rembrandt; comprei em Amsterdã logo depois da II Guerra, de um vendedor de rua, por 50 dólares.

Desde então a minúscula tela freqüenta meus sonhos. É bom, volta e meia, dar corda à imaginação, já que a realidade, neste país e no mundo, se revela de momento pouco inspiradora.

Você está folheando, distraído, a edição de Os Lusíadas que herdou de seu bisavô. E então tropeça numa página marcada por um velho pedaço de envelope. E de repente percebe que o gasto selo que o decora é nada menos do que um Olho de Boi de 1843.

Você está se livrando de uns papéis que encontrou na gaveta oculta da cômoda que arrematou num Brique. E aí cai em suas mãos uma carcomida partitura, ao pé da qual se lê a assinatura de um certo Ludwig van Beethoven.

Você colide com uma arca, no porão da casa que lhe tocou no testamento de sua tia Viridiana.

Por mera curiosidade, examina o conteúdo e dá com uma silente caixa de música. Mas logo escuta uma sinfonia: a dos 37 perfis do Rei Luís XIV, esculpidos em moedas de puríssimo ouro.

Não sei o Rembrandt. Os vendedores de rua de Amsterdã não te entregam um Rembrandt por 50 dólares, ainda que em ásperos tempos. Mas o Olho de Boi, o autógrafo de Beethoven, os ducados do Rei Sol te converteriam instantaneamente num eleito da fortuna.

Todas essas são fantasias improváveis.

Uma vez porém me vi face a face com um tesouro incalculável. Estava hospedado, naturalmente que a convite, no Atlantic, de Hamburgo. Havia senhores de casaca e de cartola no passeio fronteiro à recepção, que abriam a porta de teu táxi e te protegiam da neve.

À noite, no bar, cavalheiros e damas, trajados de smokings e de vestidos longos, dançavam na pista de sândalo, ao som de um Steinway.

A certa altura, no entanto, surgia naquele ambiente ostentoso uma sóror descalça, que suplicava ao distinto público uns trocados para o asilo que mantinha. Indiferente ao frio, aos olhares altivos, recolhia migalhas e tornava aos ventos glaciais do Alster.

Até hoje me pergunto se haverá no universo fortuna maior que a de sua fé, sua solidariedade e seu coração.

Ainda que com chuva por aqui, que tenhamos todos uma ótima terça-feira.

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