sábado, 1 de março de 2008



01 de março de 2008
N° 15526 - Cláudia Laitano


Três trilhas não triviais

1) A trilha do mês - Todos os dias da semana já foram cantados. Tem música de quem odeia segunda-feira, música de quem dá graças a Deus porque é sexta, música que conta a trágica história de um sangrento domingo de guerra. Os meses, me parece, são menos inspiradores.

Cadê as músicas sobre junho, novembro, agosto? O momesco fevereiro talvez seja o mês mais celebrado na música brasileira, mas a canção definitiva sobre uma determinada época do ano você sabe bem qual é.

O músico e crítico gaúcho Arthur Nestrowski, autor de uma das mais brilhantes análises da obra-prima de Tom Jobim, costuma dizer que ninguém sabe de cor a letra inteira de Águas de Março - mas todo mundo sabe cantar.

É como um hino nacional, uma melodia gravada no código genético musical da nação. "Tom Jobim escreveu canções alegres e tristes, nostálgicas e utópicas, de introspecção, de sedução, de exaltação.

Águas de Março parece tudo isso ao mesmo tempo. Só poderia ter sido escrita por ele, mas toca no limite de uma arte sem autor, que cai no ouvido como uma fruta cai do galho, perfeita", observa Nestrovski no livro Três Canções de Tom Jobim, que tem ainda ensaios de Lorenzo Mammi (Sabiá) e Luiz Tatit (Gabriela).

Porque hoje é sábado, um sábado de março - e ainda por cima deve chover - seus ouvidos merecem esse agrado: bote Elis e Tom a cantar Águas de Março para você.

2) A trilha da semana - Julio Iglesias e Iron Maiden fazem show em Porto Alegre na semana que vem. Fico pensando se existe alguma pessoa que vai aos dois espetáculos - não a trabalho ou contra a vontade (para levar alguém, por exemplo), mas movido por um genuíno, ainda que exótico, ecletismo musical. Cartas para o e-mail ali em cima.

3) A trilha do afeto - Março mal começou e um dos melhores filmes do ano já passou por Porto Alegre, dentro da programação do Festival de Verão.

O documentário Jogo de Cena (que tem uma imperdível sessão de pré-estréia ainda hoje à noite) é daqueles filmes que ficam se desdobrando na memória horas depois que você sai do cinema.

O ponto de partida de Eduardo Coutinho é aparentemente simples: com um anúncio no jornal, o diretor convidou mulheres com mais de 18 anos para contar suas histórias diante de uma câmera. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram escolhidas.

O filme tem os depoimentos de algumas delas e a interpretação de atrizes (Fernanda Torres, Marília Pêra e Andrea Beltrão, entre elas) para alguns desses relatos reais.

O resultado é uma reflexão profunda sobre a complexa arte de interpretar histórias alheias e as próprias, sobre falso e verdadeiro, documentário e ficcção, mas é também uma tocante homenagem ao universo feminino, mostrando como essas mulheres (todas as mulheres?) vivem experiências como maternidade, luto, desejo e frustração. Uma das cenas mais emocionantes mostra uma das personagens cantando uma cantiga de ninar.

É a canção que ela cantava para a filha, e também a que ela ouvia na infância - juntando as pontas de uma história familiar que ela ainda não foi capaz de resolver.

A história dessa personagem é única, mas não é difícil entender por que todos saem do cinema tocados pela cena.

Porque uma cantiga de ninar é sempre uma certidão de nascimento do afeto, uma trilha sonora amorosa, impressa na nossa memória, à qual recorremos instintivamente quando a marcha do tempo dispara e transforma a criança embalada na mãe que embala seu filho.

A cantiga de ninar nos inventa, nos sobrevive e ultrapassa. Como o amor de uma mãe por um filho - e desse filho pelos seus.

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