29 DE MAIO DE 2021
MARCELO RECH
Não são o povo
"Nós somos o povo", cantarolavam militantes da extrema direita enquanto invadiam o prédio do Capitólio em janeiro passado.
"Nós somos o povo", também cantarolavam militantes da extrema esquerda que capitaneavam as manifestações nas ruas do Brasil em 2013.
Sempre que ouvir alguém falar em nome do povo, desconfie de intenções autoritárias ou extremistas. Tanto os invasores do Congresso dos EUA quanto invasores de Legislativos brasileiros, entre os quais a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, afirmavam estar tomando para o povo o que pertencia ao povo. Na realidade, eram militantes de grupos radicalizados que se arvoravam, por delírio ou má-fé, em representantes da maioria sem mandato para tanto.
Quem sai à rua para protestar ou dar apoio não é o povo, mas extratos dele mobilizados por líderes políticos. Afere-se a temperatura da maioria silenciosa em pesquisas de opinião, mas ela se expressa mesmo é nas eleições. Um exemplo recente: durante três décadas, a esquerda brasileira teve a hegemonia das ruas e em 2018 acabou surpreendida pela avalanche de votos em um candidato da direita radical. Era a maioria silenciosa rejeitando a esquerda antes tão ruidosa.
Outro exemplo. Nas eleições de 1989, cobri o comício final de Lula na Praça da Sé, em São Paulo. Havia um mar de gente a perder de vista, olhos marejados pelo fervor religioso no seu líder. Lula precisou de mais três eleições para chegar à Presidência, em um figurino menos radical, porque descobriu que aqueles à sua frente na Sé podiam transbordar entusiasmo mas não representavam o sentimento da maioria da população.
Transmitir a imagem de que tem o apoio do "povo" é parte da encenação política para tentar arregimentar a maioria que não frequenta manifestações e nem dedilha com sofreguidão nas redes sociais. Em 1993, ao fazer uma série de reportagens que me valeria a condição de persona non grata em Cuba, acompanhei um comício de Fidel Castro em Havana. Um grupo de não mais de 200 apoiadores se comprimia com bandeirolas diante do palanque, onde eram banhados por holofotes para a TV oficial. Quem via a cena podia supor que uma multidão aclamava Fidel. Nas franjas dessa massa compacta, contudo, o clima era de desencanto. "Vim porque aqui ao menos tem luz", disse-me um participante agastado pelos constantes cortes de energia.
No Brasil da pandemia, os antinegacionistas se recolheram das ruas - embora para este sábado se prevejam concentrações da esquerda, o que contradiz o discurso contra aglomerações. Bolsonaro, que não liga para os contágios, vinha aproveitando para deitar e rolar em suas manifestações, como se tivesse o "povo" ao seu lado. Ele, porém, devia aprender com Lula e Fidel. A ideia de que aquela "bolha" que o aplaude é o povo, por mais sincera e ardorosa que seja, costuma ser apenas uma grande ilusão.
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