14 DE MAIO DE 2021
EDUARDO BUENO
Contigo no Kon-Tiki
Se a chuva escorre feito lágrimas e o vento uiva em meu cabelo, se o sol se põe no trigal onde meus sonhos se enredam qual novelo; se durmo empanturrado num palácio ou pelado em casa de pau a pique, nada disso me importa, pois amanhã singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Se olho para trás e o mundo arde em chamas, se Mariana se afoga, sufocada em mar de lama; se enfrento as serras e as feras nas ruínas entre as heras; se preciso escrever, sem papel, sem lápis e sem Bic, nada disso me importa, pois amanhã singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Se sou o pianista do cassino abandonado ou roqueiro decadente e desdentado, se assisti ao último suspiro de Virgílio bem ao lado de sua fonte ou conduzo Dante até a barca de Caronte, se já estive por baixo e por fora, por detrás ou defronte, feito a gota que rompeu aquele dique, nada disso me importa, pois amanhã singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Se percorri ruas congeladas entre árvores retorcidas e escutei a canção do palhaço chorando na sarjeta, se sou garçom puído e sem gorjeta, se me ajoelho diante da Caaba ou canto Rock the Casbá com The Clash, se sou o iceberg que rasga o Titanic, nada disso me importa, pois amanhã singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Se ouço vozes e não há ninguém por perto, se sinto dores atrozes e nada tenho no cofre sempre aberto; se estou atado aos remos, sem saber ao certo que galera abordaremos, se sou peso sem lastro e o canto das sereias me deixa preso nesse mastro; se dancei na lama em Woodstock ou não passo de hippie de butique, nada disso me importa, pois singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Se não vejo meu reflexo no riacho, se procuro e nunca acho, se não ouço o eco dos meus passos nem vejo o caminho que eu mesmo traço, se a Bahia jamais me deu nem régua nem compasso, se não sei dizer meu próprio nome e o que como não me mata a fome, se fico calado ou dou chilique, nada disso me importa, pois singrarei os mares, contigo no Kon-Tiki.
Teus pés no barro, céleres sob a chuva, tuas mãos de mármore, quentes como luva, teu colo arfante e os beijos doces feito uva; teu olhar de mormaço, oh, tão ardente teu regaço, no entardecer em que transamos sob o toldo do terraço, junto à sombra do alambique - isso tudo me importa e amanhã singrarei os mares contigo, só nós dois, sozinhos no Kon-Tiki.
Teus cortes, teus recortes, nossos beijos no cinema e o vigor dos teus poemas, teus longos braços em ternos abraços, o requinte de teus pratos, a decência de teus atos, tuas trilhas em meus matos: teus gestos, teus afetos, teus calores, teus carinhos, teus fulgores, o céu de tua boca é onde faço piquenique - tudo isso me importa e amanhã singrarei os mares contigo, só nós dois, sozinhos no Kon-Tiki.
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