quarta-feira, 12 de maio de 2021


12 DE MAIO DE 2021
MÁRIO CORSO

Herança maldita

O dia de Mônica amanheceu perfeito. Tinha uma missão inusitada: anunciaria uma excelente notícia para um casal de irmãos. O pai viúvo falecera sem deixar testamento, portanto eles eram os únicos beneficiados de uma conta bancária. Ocorre que para eles seria uma surpresa, pois o pai morrera na aparente pobreza. Era homem simples, sem luxos, sem bens.

Os valores, convertidos ao real, pois escutei essa história no Uruguai, seriam algo como 1 milhão para cada filho. É como ganhar na loteria sem ter jogado. A origem do dinheiro era legal. Fora acumulada lentamente ao longo de décadas, portanto compatível com a vida do falecido.

Os irmãos moravam no subúrbio da capital e estavam na casa dos 60. Ele trabalhou numa oficina mecânica até ter problemas na coluna e agora cuida de uma garagem no centro. Ela sempre trabalhou de diarista. A imagem era daquelas pessoas que apanharam da vida, aparentavam ser mais velhos do que eram.

Pois as boas novas não foram recebidas como ela supunha. Depois de tudo explicado, o homem ficou transtornado. Como se algo de que ele já desconfiasse tivesse ganhado corpo. Xingou o pai com todos os impropérios da língua espanhola. Enquanto isso a irmã chorava.

Mônica não entendia a revolta. A morte se dera já há algum tempo, não parecia ressaca pelo luto. Então o senhor pediu desculpas pelo destempero e desfiou sua dor: "Ele nos criou na miséria, não terminamos os estudos para trabalhar. Nossa falecida mãe nunca teve roupa que não fosse um trapo. Esse dinheiro é o que ele poderia ter trazido para casa, mas nunca trouxe".

Então, Mônica entendeu. Quando ela nos contou, criou uma metáfora que não poderia ser mais perfeita nem mais uruguaia: "Quando o churrasco deles chegou, já não tinham mais dentes". É claro que ainda teriam idade para aproveitar a bonança, mas era de fato tarde para aplacar as marcas de uma vida de privações desnecessárias.

A imagem do pai que eles possuíam era neutra, mas com a herança ficou negativa. Nunca saberemos ao certo as razões do finado de privar a si, à mulher e aos filhos de seu próprio dinheiro, mas sabemos que o tempo não volta. Sabemos também que o investimento nos filhos é uma extensão do próprio narcisismo: queremos que nos orgulhem, como uma parte de nós próprios que segue adiante, de preferência melhorada.

Esse pai sovina, que nunca propiciou um brinquedo, uma tevê em casa, um domingo de sol com choripán na rambla, estudos e bem-estar, impôs aos filhos sua própria desvalia e desesperança. Descrente de si e do próprio futuro, deixou como verdadeira herança sua tristeza. Essa, não há dinheiro que apague.

MÁRIO CORSO

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