segunda-feira, 10 de maio de 2021


Mario Quintana e o empacotador

Já fui um competente fazedor de pacotes. Por Deus. Trabalhava na Livraria Sulina, no Departamento de Promoção, e às vezes tinha de empacotar algum livro. Nossa função, lá no departamento, era dar livros para professores, jornalistas e escritores. Volta e meia, precisávamos enviá-los pelo correio, donde a necessidade do pacote.

Muita gente nos visitava só para pegar livros de graça. Nossa sala ficava nos fundos da matriz da Sulina, na Borges. Havia duas entradas: pela frente, por uma galeria, ou por trás, pela livraria. Lembro do Mario Quintana chegando ao nosso setor por aquela porta de trás. Ele vinha sempre sério, sempre carregando uma sacola. Chegava sem falar nada. Nós parávamos o que estávamos fazendo e ficávamos olhando para ele com pesado respeito e, até, leve temor. O Mario Quintana nem nos olhava. Ia direto para as prateleiras, levantava o queixo e analisava os livros. Tirava um e o depositava sobre a mesa. E outro. E outro. E mais outro. Formava uma pilha. Enfim satisfeito, colocava os livros na sacola e ia embora, saindo pela porta da frente, sem sequer dizer babaus.

Se o Mario Quintana quisesse, ficaria feliz em empacotar um livro para ele. Orgulhava-me dos meus pacotes. Eram lisos, simples, porém elegantes. Desenvolvi a técnica observando o Sérgio Lüdtke, que era veterano na livraria e, por consequência, no empacotamento.

Sentia prazer naquela tarefa singela, porque nunca tive destreza em habilidades manuais, embora não as menoscabe. Ao contrário, admiro quem tem jeito para fazer as coisas práticas da vida. Tenho um amigo, o Ércio, que uma vez comandou um trailer de xis e cachorro-quente. Era ele mesmo quem lidava na chapa, preparando xis-galinha, xis-bacon, xis-tudo. Pois, certa feita, o Ércio me contou que conseguia quebrar seis ovos de uma só vez, sem se complicar. Não sei por quanto tempo permaneci de olhos arregalados e boca aberta, após ouvir aquilo. Fico irritado quando vou quebrar um único ovo e pedacinhos da casca caem na frigideira! Desde então, o Ércio se tornou o meu ídolo.

Suspeito que homens com a capacidade de construir objetos com as próprias mãos são mais reflexivos e compreendem melhor a vida. O Paulinho da Viola é marceneiro. Nas horas vagas, ele monta armários, mesas e cadeiras. Atribuo a essa atividade a mansidão com que ele trata o mundo.

Meu avô, já contei, era sapateiro. Mas não apenas consertava calçados; fazia-os ele próprio. Tenho uma foto em que estou dentro de sapatos feitos por ele, eu com cinco anos, ele ao meu lado, com a idade que tenho agora.

Deve ser algo muito especial você ver outra pessoa usando algo que saiu da sua cabeça diretamente para a ponta dos seus dedos.

Ocorre que, outro dia, surgiu-me a necessidade de enviar um material pelo correio. Decidi fazer o pacote, como nos velhos tempos. Quem disse que conseguia? Ora sobrava papel, ora faltava e, quando não sobrava nem faltava, o embrulho saía frouxo, torto, mal amanhado. Desisti. "Perdi o contato com o barro da vida!", suspirei para mim mesmo.

Derrotado, levei o volume para a agência de correio e larguei na frente do funcionário. Ele analisou o objeto, mediu-o com os olhos e pôs-se em ação. Em três ou quatro minutos, produziu um pacote perfeito, reto como o caminho da virtude. Então me olhou, sorrindo, e percebi o que ele estava sentindo.

- Parabéns! - disse-lhe. - Este é um pacote e tanto!

O homem inflou o peito, abriu ainda mais o sorriso e falou:

- Obrigado! Ninguém antes elogiou o meu pacote!

Saí de lá contente, pensando que eu também me sentiria agradecido se o Mario Quintana tivesse elogiado o meu pacote, algum dia. Não fiz o meu pacote, não sei mais fazer, mas fiz algo que valeu o dia. Fiz um bom homem feliz. Que oportunidade perdeu o Mario Quintana.

*Esta crônica foi publicada originalmente em 12 de abril de 2018

*David Coimbra está em licença-saúde

DAVID COIMBRA 

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