segunda-feira, 10 de maio de 2021


10 DE MAIO DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

Tártaro

A história é conhecida: em Roma, um mercador de escravos ofereceu a seu freguês favorito, um riquíssimo senador da República, duas peças raras que seus homens tinham trazido do distante reino da Trácia: dois jovens escravos gêmeos, tão idênticos em tudo - no peso e na altura, nas feições, no porte e na maneira de andar - que só se distinguiam pelo brinco que um deles trazia na orelha esquerda. O preço era exorbitante, mas o comprador não hesitou um segundo em fechar o negócio, ansioso por gozar a admiração e a inveja dos convidados de seus famosos banquetes.

Não era passada uma semana quando o mercador recebeu uma ameaçadora visita do senador em pessoa, acompanhado de dois guarda-costas forçudos. Vinha exigir o seu dinheiro de volta porque, interrogando os dois pretensos gêmeos com o auxílio de intérpretes, tinha desmascarado toda a fraude: não eram irmãos coisa nenhuma e nunca tinham se visto até então. Sem se abalar, o mercador limitou- se a lamentar sua má sorte: se tivesse sabido disso antes, teria pedido três vezes o preço cobrado, pois tal semelhança entre dois completos estranhos era cem vezes mais rara do que a semelhança entre dois filhos dos mesmos pais.

Pois, é com esta história que começo a responder à pergunta enviada pela leitora Alzira O., de Foz do Iguaçu: "Professor, sou enfermeira de um dentista aqui de Foz e tive um choque na semana passada quando vi uma cozinheira da TV dar a receita de um bife tártaro, que na hora ela fez parecido com um quibe cru, com uma gema de ovo no meio. Não querendo parecer nojenta, não entendo por que uma comida fina como esta tem o mesmo nome que a gente dá no consultório àquela craca que se forma atrás dos dentes dos pacientes e que tanto trabalho dá para raspar. Quem veio primeiro?".

Prezada leitora, esta é uma das perguntas cruciais de quem investiga a história de uma palavra: quem veio primeiro? Nestes casos, como geógrafos, temos de subir o rio em busca de sua nascente. Há exemplos fáceis: a macedônia de legumes, aquele prato feito com vários vegetais cortados em cubos, recebeu esse nome por analogia com a Macedõnia, nome que antigamente designava a região dos Bálcãs, na sua eterna confusão política e geográfica. O caso de tártaro, porém, o problema é bem mais complexo.

Em primeiro lugar, temos o Tártaro da mitologia grega, uma das regiões em que se dividia o Mundo dos Mortos. Enquanto os heróis e as celebridades ganhavam o repouso eterno nos Campos Elísios, uma espécie de condomínio privilegiado que contava inclusive com um sol e com estrelas próprias, os grandes celerados - isto é, aqueles que tinham cometido crimes contra os próprios deuses - eram encerrados no Tártaro, um abismo escuro e profundo cercado por muralhas triplas e por um rio de lava.

Em seguida, temos os tártaros, habitantes da Tartária, nome usado desde a Idade Média para designar uma região da Ásia habitada principalmente pelos mongóis. O nome original era Tatária, mas ganhou um R e passou a Tartária certamente por influência daquele Tártaro da mitologia greco-latina. O nome dos tártaros ficou conhecido e temido pelas façanhas de Gengis Khan, que nosso João de Barros, escrevendo cinquenta anos depois do descobrimento do Brasil, chamava de Chinchis Cão. Para o Ocidente cristão, esses guerreiros mongóis eram verdadeiros demônios, e não demorou muito para os cronistas espalharem o boato de que eles eram tão selvagens que colocavam tiras de carne crua debaixo de sua sela para amaciá-las e salgá- las com o suor do animal - interpretação equivocada e tendenciosa do costume mongol de aplicar finas fatias de carne fresca nos lugares em que o lombo do cavalo começava a ficar ferido com o atrito da sela. Seja como for, foi daí que se chamou de bife tártaro esse prato que é feito e temperado de várias maneiras, mas sempre à base carne crua moída.

Por último, o terceiro tártaro veio do Latim tartarum, vocábulo que era usado para designar uma crosta calcária que costuma se formar nas tubulações de água e nos recipientes destinados ao fabrico do vinho. Este é o tártaro que costumas ver no consultório, cara Alzira, pois foi assim, por analogia, que também passou a se chamar aquele depósito endurecido - aquela "craca", como dizes na pergunta - que se forma nos dentes ou na borda da gengiva.

Por isso fiz questão de contar a história dos dois escravos: se já seria incomum que o vocábulo tártaro tivesse três significados tão diferentes, muito, muitíssimo mais incomum, então, é o que realmente aconteceu: três vocábulos diferentes, sem nunca se terem visto, acabaram sósias perfeitos.

CLÁUDIO MORENO

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