sábado, 15 de maio de 2021


Inferno com jeito de paraíso

A vida na pandemia acabou criando um hábito diferente aqui em casa. A gente escolhe um lugar para onde nunca foi e fica namorando por algum tempo, até que surge a oportunidade e botamos o pé na estrada.

Foi assim com o Hermenegildo, com os Campos de Cima da Serra, com as Missões, com o Itaimbezinho. Lugares que eu sempre quis conhecer e que, antes do mundo fechar, nunca havia visitado.

Nos saudosos tempos das feiras do livro do Interior, passei por diversas cidades onde deixei meu coração - sempre quis dizer essa frase. Pelotas, Rio Grande, Santa Maria, Passo Fundo, Santa Cruz, Lajeado Cruz Alta, Dom Pedrito, Vacaria e tantas outras. Estive em Alegrete, em Três Passos. Campo Bom, Três Coroas, Estância Velha, Charqueadas, Montenegro. Em Caxias, Bento, Gramado, Canela. Precisaria do mapa para lembrar de todos os nomes.

Engraçado que sempre me pareceu mais emocionante, com o perdão da sensação trouxa, pegar um avião e partir para algum destino mais distante, mesmo no Brasil. Não mais. Hoje eu sonho com a próxima aventura nos pagos, e isso que mal voltei da última, no Rincão do Inferno, entre Lavras do Sul e Bagé.

O Rincão do Inferno é um cânion surgido em uma região rochosa que, segundo diz a placa no último ponto antes de se começar a descida, tem 500 milhões de anos. Um dos tantos movimentos do planeta fissurou o paredão há outros milhares de séculos, e desde então ele está assim como o encontramos hoje. Lá embaixo, o Rio Camaquã foi abrindo caminho entre as pedras, e o resultado não tem cara nenhuma de inferno. Nem o paraíso faz justiça a tanta beleza.

O nome, na verdade, vem do tempo em que os escravos se escondiam ali para fugir dos estancieiros e feitores. Hoje o lugar abriga uma das tantas comunidades quilombolas da região. É história viva junto com uma natureza escandalosa de tão linda.

Para chegar lá, é preciso pegar uma estrada de terra que vai dar em uma propriedade particular, o Rincão dos Francos. Pessoas de apartamento, como eu e o meu filho, podem ficar um tanto atarantadas diante da porteira fechada, mesmo com o Google Maps insistindo que, sim, você chegou ao seu destino. Se você já abriu uma porteira daquelas, está preparado para tudo na vida. Se nunca abriu, não estranhe quando a cerca desmontar inteira e te deixar com a estaca que segurava o conjunto todo na mão. A primeira reação é o desespero. A segunda, também. Em seguida, você começa a tentar levantar a cerca outra vez, falha, deixa tudo do melhor jeito que consegue, mole e caindo, e segue viagem, porque não existe ninguém para lado algum para quem pedir uma mão.

Depois da primeira porteira, surpresa: vão surgir muitas outras no caminho. E depois de brigar com os integrantes da família, e de quase desistir de tudo e voltar, você pega a manha da coisa e quase fica querendo que apareçam mais porteiras no caminho. Mentira, exagerei.

Quem cuida daquela imensidão é um casal, dona Onélia e seu Alcíbio Franco, que gosta de ser chamado de Bic, mais o irmão dele, seu Enildo. Descendentes de escravos, eles ganharam a terra justamente por ser inóspita, imprestável para a agricultura e a criação. Aos 83 anos, dona Onélia nunca saiu do Rincão do Inferno. Já os homens vão de vez em quando até Bagé para abastecer a casa. Após uns minutinhos de conversa simpática, com os cachorros latindo e algumas galinhas assustadas em volta, começamos a descida - que é íngreme, mas com calma a gente chega.

Lá embaixo, a paisagem é a que se vê nas fotos da internet, só que mais bonita ainda. Sabe o silêncio absoluto? É o que se ouve. Dá vontade de rezar para que o ministro aquele jamais desconfie que o lugar existe, ele que não é exatamente um fã da natureza. A região, aliás, está sempre na mira das mineradoras.

Na volta, a beleza que a gente leva nos olhos deixa a subida, puxada, menos dura. E o abrir e fechar das várias cancelas passa a fazer sentido. Se com o acesso difícil já encontramos uma lata de sardinha e tampas de garrafa no caminho, imagine se fosse simples chegar.

O jeito é preservar esse e todos os paraísos que a gente encontrar nesse nosso rincão chamado vida.

CLAUDIA TAJES

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