terça-feira, 25 de maio de 2021


25 DE MAIO DE 2021
NÍLSON SOUZA

Pelé e a ditadura

No dia 1º de novembro de 1971, fui escalado para marcar Pelé. Minha missão de repórter recém saído do estágio era bem objetiva: grudar no maior jogador de futebol de todos os tempos desde o momento de sua chegada ao Estádio Olímpico, onde o Santos enfrentou o Grêmio, até o seu retorno para o hotel. E, posteriormente, descrever para os leitores do jornal tudo o que ocorresse com ele, em torno dele e por causa dele.

Pelé, tricampeão mundial na Copa do ano anterior, era simplesmente o brasileiro mais amado e idolatrado pelos 90 milhões de conterrâneos em ação daqueles tempos de ufanismo e opressão.

Recuperei outro dia, no museu Hipólito da Costa, a página que escrevi sobre ele naquela noite de quarta-feira, meio século atrás - e voltei a me emocionar ao ler o meu próprio relato. Na edição, a reportagem foi dividida em dois momentos: Pelé sem a bola e Pelé com a bola. Mesmo na condição de fã empolgado pela oportunidade de entrevistar o grande ídolo, acho que consegui fazer o meu trabalho com isenção e profissionalismo.

No dia seguinte à pesquisa, assisti na Netflix ao mais recente documentário sobre Pelé, que enquadra a carreira inigualável do craque no contexto da ditadura militar. Pelé vitorioso, Pelé aclamado, Pelé recebido pelo presidente, Pelé abraçado ao general Médici, Pelé comparado criticamente a Muhammad Ali, o Pelé do boxe, que se recusou a lutar na guerra do Vietnã.

O filme não condena Pelé, mas reacende um questionamento histórico: ele deveria ter usado o seu prestígio para contestar o regime em vez de legitimá-lo? O próprio Pelé, confrontado com a questão, parece hesitante. Mas os testemunhos de seus contemporâneos - entre os quais o cantor Gilberto Gil e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - o absolvem integralmente. A visão geral é de que ele fez o que estava ao seu alcance para dar alegrias ao povo brasileiro.

E como deu!

Por óbvio, também prefiro Pelé com a bola. No filme, porém, aquele senhor octogenário de cadeira de rodas que batuca saudades na sua antiga caixinha de engraxate me faz pensar que os erros e acertos do Pelé sem a bola já prescreveram. As perversidades da ditadura é que são imprescritíveis.

NÍLSON SOUZA

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