sábado, 20 de março de 2021


20 DE MARÇO DE 2021
ELIANE MARQUES

O MAL-ESTAR DAS ESTÁTUAS

Por volta de 1835, um grupo de quilombolas, organizado segundo funções e hierarquia internas, acendeu as chamas da revolta no entorno das charqueadas, na Serra dos Tapes (Pelotas), ameaçando o sono de senhores, sinhás e capatazes. Prometia-se 400 mil reis pela cabeça do chefe do "bando", o general Manoel Padeiro, e 200 mil por seus companheiros. Entre eles, a destemida Rosa. Em junho de 2020 correu a notícia de que Pelotas homenagearia o herói, com busto, escultura ou estátua.

Em 13 de março de 2021, autoridades inauguraram em frente à Câmara do Rio de Janeiro uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco, nos moldes das usadas na identificação dos logradouros daquela cidade. "Mulher negra, favelada, LGBT e defensora dos direitos humanos. Brutalmente assassinada em 14 de março de 2018 por lutar por uma sociedade mais justa". Essa é a inscrição na placa. Em outubro de 2018, com a justificativa de que fora erigida de modo ilegal, políticos haviam quebrado outra placa em homenagem a ela.

Quando se ergue uma estátua ou se afixa uma placa em espaços públicos, a quem prestamos homenagem, à que projeto de sociedade aplaudimos? A remoção desses monumentos remove a história ou outra história associada a essa remoção será contada? O possível busto do general Padeiro e a placa à vereadora Marielle Franco tensionam o debate provocado por tais perguntas.

Ao olharmos para uma estátua, somos remetidos ao tempo em que aquele bloco de pedras era vida; quando representava as aspirações do grupo dominante ou enunciava uma ruptura com esse. Nos idos de 1835, Padeiro era um malfeitor, odiado pelas autoridades e pelos donos das charqueadas. Cortar sua cabeça significava cortar a cabeça dos quilombolas e espetaculizar a vingança da sociedade branca contra o braço negro que lhe dava sustento. A estátua de Padeiro seria a sua cabeça cortada.

O monumento também nos arremessa ao tempo em que foi posto em praça pública, quando, talvez, tenha falado, sem palavras, do projeto de sociedade em voga, como a estátua do bandeirante Borba Gato (1649-1718), inaugurada em 1963 em São Paulo.

E, por fim, no tempo de hoje, talvez aquele bloco de pedras continue falando da "visão de mundo" do grupo social dominante, mas agora em disputas discursivas encabeçadas pelos cabeças cortadas e que, por hora, puderam articular um discurso contrário ao apagamento da memória de Manoel Padeiro e crítico à permanência de uma estátua de Borba Gato, por exemplo.

As estátuas, placas e outros monumentos respondem às perguntas ontológicas quem sou eu ou quem somos nós e à questão ética de como devemos viver ou o que é a boa vida. Até pouco tempo essas perguntas eram respondidas com fundamento em um projeto de modernidade branca-europeia como único e verdadeiro. Por isso o pavor pelo debate sobre o destino dos monumentos que representam assassinos, escravizadores, traficantes. Vivemos num mal-estar porque teremos de renunciar a muitos lugares que tínhamos como garantidos, como se fossem essas estátuas que pensávamos eternas ou jamais removíveis.

ELIANE MARQUES

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