sexta-feira, 12 de março de 2021


12 DE MARÇO DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

Guaíba, o nosso rio

Com entusiasmo indisfarçável, Marilda B., grande amiga e fiel leitora, escreve na sua linguagem pitoresca para comemorar o que ela chama de "decisão histórica" do IBGE: "Estou passando alguns dias aqui na praia da Joaquina, em Floripa, e festejei a notícia com meu filho e minha nora: finalmente podemos dizer que nosso Guaíba é rio mesmo! O senhor viu? Deu até no Facebook! Agora puseram um fim naquela ladainha, enterraram para sempre a discussão! Só não entendo por que essa gente morrinha vive procurando chifre em cavalo".

Sim, minha cara Marilda, eu vi no Facebook da semana passada - mas isso é notícia que tem mais de quatro anos. A uma consulta feita pela Associação dos Amigos do Cais Mauá, a Coordenação de Cartografia do IBGE reconheceu que a classificação do Guaíba em seus mapas estava equivocada: "... a sua informação é procedente.

De fato, onde se lê Lago Guaíba, há um equívoco, uma vez que o topônimo correto é Rio Guaíba". Esta discussão, no entanto, velha como a Sé de Braga, não terminou aqui, e talvez jamais termine, pelo que vou explicar em seguida.

Em geral, a toponímia costuma usar, como padrão mais comum, um nome composto de duas partes. A primeira faz a classificação genérica do acidente geográfico - Cabo Frio, Lagoa Mirim, Atol das Rocas, Rio Amazonas; cabe à segunda individualizar o acidente em questão: Rio Amazonas, Rio Paraná, Rio Uruguai. Ora, esse enquadramento numa classe (como em todas as taxonomias) pode sofrer variações ao longo do tempo; primeiro, porque os conceitos podem mudar de acordo com o progresso da Ciência (a abrangência do conceito de continente, por exemplo, sofreu várias revisões ao longo dos séculos); segundo, porque novas pesquisas sobre um determinado acidente geográfico podem revelar detalhes que alterariam sua classificação - exatamente o caso do Guaíba. No universo acadêmico, correm várias teorias a seu respeito, baseadas em sua localização geográfica, no regime de suas águas, na sua relação com afluentes e em muitos outros critérios que ficam muito acima do meu conhecimento - ele poderia ser um rio, um lago, um estuário, uma bacia...

Essa definição caberá aos estudiosos, que poderão, ou não, chegar um dia a um consenso - mas isso não vai mudar a nossa vida, cara Marilda, a não ser pelas consequências legais que um determinado enquadramento possa provocar. Se for classificado como rio, a Área de Preservação Permanente junto às margens do Guaíba será dez vezes mais larga do que seria se ele fosse classificado como lago. Não preciso dizer que aqui a disputa deixa de interessar apenas aos acadêmicos e invade a vida de nós todos pelas óbvias implicações ecológicas que ela trará.

A nota do IBGE trouxe um alento para os que lutam para preservar nossos recursos naturais, mas não altera em nada - friso bem: em absolutamente nada - o nome rio que para sempre vai acompanhar o Guaíba. Como já escrevi nesta coluna, há muitos anos, "será que alguém imagina que vamos deixar de chamá-lo de rio só porque tecnicamente ele não é um rio?

Sabemos que já faz muito tempo que os especialistas vêm debatendo a verdadeira natureza do Guaíba. Depois de ser rio por dois séculos, passou alguns anos como lago e agora recebe o rótulo de estuário, que chega com ares de classificação definitiva (desde que, é bom lembrar, o próprio conceito de estuário não venha, um dia, sofrer alterações, como sói acontecer no mundo do conhecimento)".

Questões como essa pertencem a um mundo em que se exige precisão de linguagem para cada situação. O mais inexperiente advogado, ao contrário dos mortais, jamais confundiria furto e roubo ou taxa e imposto. Um biólogo distingue aves de pássaros, enquanto eu não seria capaz de dizer em qual das duas categoria se enquadram os urubus, as pombas, os periquitos, as andorinhas ou os canários. Os especialistas precisam manter esse rigor definitório, mas para nós, na vida real, essas distinções simplesmente não podem ser levadas em consideração, ou nossa vida viveria paralisada por crises de exatidão.

A lagoa dos Patos e a lagoa da Conceição, por estarem ligadas ao mar, são tecnicamente lagunas - mas só no mundo acadêmico. Há quem diga que o Mar Morto é, na verdade, um grande lago - mas ninguém vai inventar de chamá-lo de Lago Morto. Um aterro fez com que a ilha do Retiro, onde fica o estádio do Sport Recife, deixasse de ser ilha, mas ninguém pensa em trocar seu nome por aterro do Retiro. Por tudo isso, seja lago, estuário, bacia, laguna ou mesmo mar, o curso d?água que banha os pezinhos dos pequenos porto-alegrenses sempre será referido como o rio Guaíba.

CLÁUDIO MORENO

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