terça-feira, 16 de março de 2021


16 DE MARÇO DE 2021
HUMBERTO TREZZI

Legítima defesa da desonra

A TV colorida ainda engatinhava no Brasil, eu era um adolescente rebelde e lembro como se fosse hoje de, num raro momento de pasmaceira, ter parado para assistir ao Jornal Nacional. O vozeirão do Cid Moreira anunciava um dos maiores escândalos da década de 1970: o assassinato de Ângela Diniz, a Pantera de Minas, ex-miss, por seu namorado, o playboy Raul "Doca" Street. O crime aconteceu numa mansão na paradisíaca Praia dos Ossos (hoje município de Búzios-RJ). Os dois tinham discutido, ela o mandou embora. E ele, inconformado, a fuzilou com quatro tiros de pistola Beretta. Isso foi em 30 de dezembro de 1976.

Crianças, o Brasil era outro, outra era a moral. Matar "por amor" ou em descontrole "sob forte emoção" eram argumentos aceitos pelos jurados. Nada muito estranho para um país com hábitos semifeudais em pleno século 20, que misturava rock e pistolagem, sonhava com viagens espaciais, mas desmatava sertões para plantar a soja (Ave Soja, Santa Soja). Até por isso, todos paramos para assistir ao júri do Doca Street, em 1979.

E não é que o playboy saiu livre do fórum? Entre horrorizado e hipnotizado com a oratória, vi o famoso advogado fluminense Evandro Lins e Silva alegar que Ângela era uma "vênus lasciva", que enlouquecera Doca ao desprezá-lo. O playboy pegou sentença de 18 meses de reclusão, mas como já tinha cumprido prisão preventiva pelo equivalente a um terço da pena, foi libertado.

Mas aí o Brasil mostrou que os tempos começavam a mudar. A TV já exibia um seriado chamado Malu Mulher, da época em que Regina Duarte posava de feminista. E mulheres de todo o Brasil começaram a pedir novo julgamento para Doca. Que aconteceu, em 1981. No segundo round dessa peleia, o playboy não escapou: condenado a 15 anos de reclusão, cumpriu quatro em regime fechado.

Aí você pensa que a tal defesa da honra caiu em desuso, né? Ledo engano. Advogados criminalistas continuaram a ter sucesso com essa tese, Brasil afora. Um deles, o gaúcho Lúcio de Constantino. Ele me conta que conseguiu absolver Lucas, um homem que chegou cedo em casa e encontrou a mulher em flagrante adultério. O amante pulou a janela e fugiu. Inconformado, o marido traído matou a esposa a facadas e depois tentou se matar. Foi preso, mas acabou absolvido no júri por 4 a 3.

Ainda em 2016, um sujeito foi libertado em Nova Era (MG), mesmo após ter matado a mulher ao surpreender diálogos de WhatsApp no qual ela falava com outro homem. Ele foi absolvido em todas as instâncias.

Pois na semana passada o Supremo Tribunal Federal (STF), em voto unânime de 11 ministros, decidiu que a tese de legítima defesa da honra não pode mais ser usada pela defesa de homicidas.

Eu e você, modernos que somos, sempre achamos que, se o amor acabou, acabado está. Partir para outra. Mas em mentes arcaicas - e no submundo das gangues - ainda persiste, acredite, a ideia de que é direito executar suas ex-mulheres, muitas vezes por traições imaginadas. Sem direito a defesa.

Em tempo: Doca Street, ao sair da prisão, foi vender carros usados e operar no mercado financeiro. Morreu no ano passado, de ataque cardíaco e sem novos episódios sangrentos na sua biografia. Aos 86 anos.

HUMBERTO TREZZI | INTERINO

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