13 DE MARÇO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL
DUELO
A palavra latina duellum é uma forma arcaica de bellum, guerra, e decorre da raiz proto-indo-europeia *dau ou *deu, machucar, destruir, queimar. Uma etimologia popular valoriza o número latino duo (II, ou 2), e, por conseguinte, o par de oponentes que se enfrenta. Assim, o duelo seria um desafio de dois contendores, como Gilgamesh e Enkidu, no clássico sumério, Heitor e Aquiles diante de Troia, ou como no famoso duelo que vitimou o poeta russo Aleksandr Pushkin (1799-1837), com o oficial francês Georges d?Anthès, em disputa erótica. O embate pode ser também verbal ou desportivo, e costuma envolver defesa da honra; as regras podem levar às últimas consequências, como no duelo de morte. Muitas vezes proibido, a que vem, hoje, a lembrança desse antiquado costume?
No dia 09/03 p.p., um general da reserva lançou a provocação, ao reagir a recente ato soberano do Supremo Tribunal Federal e declarar que o ex-presidente Lula é "criatura deplorável", e, ato contínuo, ameaçar com as Forças Armadas para impor sua vontade política, ora travestida de zelo cívico. A inaceitável ameaça funda-se em poder usurpado e reitera a desordeira e subversiva mania de muitos oficiais, na história do Brasil, de quererem usar para seu interesse político, privado ou corporativo, o poder que a sociedade delega ao Estado e às forças militares para outros fins, especialmente a defesa de nossas fronteiras.
Essa tentativa de usurpação do poder ergue a questão: despido dos aparatos que nós, cidadãos brasileiros, um dia lhe emprestamos, a dispendiosa estrutura das Forças Armadas, o que é e o que poderia um general, aposentado ou ativo? Por que se presume dotado de poderes para ameaçar a República, querendo deturpar sua função e recursos atribuídos, quando contrariado? Para aferir que armas de fato tem e como as maneja o aludido golpista, resta lançar-lhe esta chamada para um duelo. Como cidadão comum e na plenitude de meus direitos, assumo a honra da República, ultrajada, para cobrar do agressor o merecido reparo.
Como proceder ao duelo? Descartada a forma violenta, comum em duelos do passado mas imprópria no trato civilizado, resta-nos o desafio intelectual. Não é assimétrico, pois o general em pauta possui doutorado, como eu. Poderá ter, portanto, argumentos para defender quem é deplorável, o ex-presidente ou aquele que ameaça a paz e quer romper a ordem jurídica. Será boa ocasião para escrutinarmos o que vêm a ser o civismo e a cidadania do povo brasileiro, se a defesa da lisura judiciária (anda que tardia) e da democracia ou a subversão da lei e do poder da Justiça, para fins políticos e ideológicos? Poderemos, em contenda retórica, determinar o que precisa a pátria para ter um futuro mais digno, se o enfrentamento da iniquidade social ou a garantia de injustiças e casuísmos pelo uso impróprio da força, e discutir, por que não, o que é uma nação e quem a honra, quem a envergonha.
A carta remetida a um general lúcido foi devolvida, como, creio, ficará sem resposta este duelo. Em era cacofônica, há silêncios reveladores, e o desafio das palavras necessárias.
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