17 DE OUTUBRO DE 2020
DAVID COIMBRA
Jorge, um brincalhão
Houve uma época em que nossa principal atividade, aos sábados, era furar festa de aniversário de 15 anos. É que as gurias faziam grandes festas quando completavam 15 anos, naquela época. Era o chamado "début" - a menina se tornava moça e, então, a família promovia um esfervilhante evento para "apresentá-la à sociedade". É um rito de passagem, algo semelhante ao bar mitzvah dos meninos judeus.
Tenho a impressão de que Porto Alegre é a única das capitais brasileiras que mantém a tradição das festas de debutantes. Tem a ver com as origens germânicas da cidade - os alemães sempre gostaram de se reunir em clubes, e os clubes tinham essas datas como centro de suas atividades. Na prática, a razão de sua existência.
Nós, guris do IAPI, nunca éramos convidados para essas festas, mas, como tínhamos mais ou menos a idade das aniversariantes, era lá que estava o nosso, digamos, "público-alvo", então dávamos um jeito de entrar. Quase sempre conseguíamos. Furávamos festas em clubes, salões de edifícios e até em residências. Se uma de nossas amigas era convidada, íamos junto, em alegre bando. A aniversariante havia convidado uma pessoa, chegavam oito.
Nessas festas, acontecia algo curioso: o Jorge Barnabé sempre arrumava confusão. Só que ele nunca brigava, nós é que tínhamos de acudi-lo. Se dava problema, o bolor era conosco, e ele ficava assistindo. Era estranho, porque o Jorge é um cara calmo, o típico boa-praça. Não lembro de tê-lo visto em altercação com alguém, não lembro nem sequer de já tê-lo visto irritado. O caso é que ele é um gozador e, num ambiente em que éramos intrusos, a gozação às vezes não pegava bem.
Exemplo: uma vez, havia na festa um sujeito chamado Jarbas. O Jorge, no primeiro minuto do primeiro tempo, disse que Jarbas era nome de mordomo, e o Jarbas ouviu. Depois ele ficou: "Jarbas, me traz uma cerveja!", "Jarbas, quero uma empadinha!", "Jarbas, se continuar nessa demora, vou te demitir!". O Jarbas se aborreceu e saiu. Voltou com uns 12 amigos. Postou-se na frente do Jorge, que estava com um copo de plástico na mão. O Jarbas arrancou o copo das mãos do Jorge, amassou-o e o atirou no chão. O Jorge levantou as sobrancelhas e repetiu um bordão bem dele: "Que te fiz?". Ele dizia isso sempre, erguendo os ombros, num tom meio inocente: "Quitifiz?...". Antes que o Jarbas e os amigos do Jarbas o atacassem, nós interviemos, cercamos o Jorge e o arrastamos para fora. Fim de festa para todos nós. O Jarbas ficou lá, com os amigos, as cervejas e as gurias. Francamente, Jorge!
Não era só com estranhos que o Jorge aprontava. Se existia uma chance de fazer uma serelepice, ele fazia.
Exemplo número 2: o campo Alim Pedro, por certo tempo, esteve fechado para quem não pagasse aluguel. Mas nós não nos intimidamos com essa arbitrariedade da prefeitura: abrimos um buraco em um trecho da cerca. Bastava levantar a tela de arame e nos arrastarmos para dentro. Então, um erguia a tela e o outro rastejava, de barriga no chão, até o outro lado.
Uma tarde, levantei a tela e o Amilton Cavalo foi passar. O Jorge estava parado ao lado, observando, com um joelho no chão. O Amilton ficou com metade do corpo para dentro e metade para fora, a tela bem no meio das costas. Aí o Jorge se aproveitou.
Antes de continuar, preciso ressaltar dois fatos. O primeiro é que, naquele tempo, os homens estavam sempre arrostando sua masculinidade. Aquela coisa: "Sou macho, sou macho". O segundo, que o Amilton era bem mais forte do que o Jorge.
Dito isso, conto que, quando o Jorge viu o Amilton indefeso, quase imobilizado pela tela de arame, com as nádegas apontando para o azul do firmamento, não teve dúvida: entesou o dedo indicador como se fosse uma lança e, sem piedade ou nojo, espetou-o na área do calção em que provavelmente estava localizado o esfíncter do amigo. O Jorge era conhecido por ter pontaria precisa, em seus chutes no futebol, e ali, naquela arremetida pré-jogo, não foi diferente. Ele atingiu o âmago, o cerne, as profundidades da alma do Amilton, que, atacado assim, à traição, lançou ao ar um urro que era um misto de espanto e ultraje, um grito de horror primevo que estremeceu as paredes amareladas do IAPI: "AUUUUUUUUUUUUUUUUU!".
De imediato, o Amilton lutou para se livrar da prisão da tela, enquanto eu rolava no chão de tanto rir. O Jorge saiu correndo, e ele atrás. Perseguiu o Jorge até os altos da Plínio, nas franjas da Carlos Gomes. "Pensei que ele não ia desistir", relatou o Jorge mais tarde, rindo.
Sempre fez essas coisas, o Jorge, sempre foi um bem-humorado, um brincalhão, um cara que tenta aproveitar a vida e a convivência com as pessoas que ama. Não sei como um coração desses foi sofrer um infarto, como sofreu, dias atrás. Hoje, meu amigo está internado no Instituto de Cardiologia, bem cuidado por médicos competentes, mas correndo perigo. Penso nele todos os dias, rezo por ele todas as noites. E peço: força, velho camarada. Força.
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