Samuel Pessoa
02/04/2017 02h00
Quem matou Daniel Blake?
Eu, Daniel Blake [I, Daniel Blake, Inglaterra, 2016], de Ken Loach (Imovision). Gênero: drama. Elenco: Dave Johns, Hayley Squires. Classificação: verifique em www.justica.gov.br/seus-direitos/classificacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Daniel Blake é um carpinteiro inglês competente de pouco mais de 60 anos. Recupera-se de um problema no coração e, segundo o departamento médico da empresa em que trabalha, tem que repousar.
No entanto, segundo a empresa terceirizada contratada pela seguridade social britânica para verificar se Daniel é ou não elegível ao auxílio-doença, o carpinteiro está apto a trabalhar.
Daniel está no limbo. Não recebe o salário da empresa, pois não está apto a trabalhar, nem o auxílio-doença, pois está apto a trabalhar.
O carpinteiro experimentado é um homem antigo. Não sabe lidar com computadores e internet -o que muito dificulta todo o processo de preenchimento on-line dos formulários- e não tem a esperteza das novas gerações, que sabem que, nessa circunstância, o melhor é contratar imediatamente um advogado.
O belíssimo filme de Ken Loach -acaba de sair de cartaz- denuncia as ineficiências e as injustiças da burocracia da seguridade britânica.
Com certeza, a tensão da perda de renda, em meio ao processo kafkiano de enfrentar a burocracia, causou o ataque cardíaco que matou Daniel Blake.
Filme construído na chave de contos de fada, nosso herói, além de profissional competente, é cidadão exemplar. Cumpre com todas as suas obrigações e é ótimo marido. Amou e cuidou de sua mulher, que já morreu.
Não teve filhos, possivelmente em razão das limitações de saúde da mulher. Era bipolar. Ajuda os vizinhos, reclama do lixo no lugar errado, colabora com quem pode. Para Ken Loach, a ganância capitalista e a frieza dos governos conservadores ingleses mataram Daniel Blake.
No Brasil, o seguro-defeso remunera pescadores profissionais ao longo do período de reprodução dos peixes, desde que esses profissionais não pesquem. Assim, em teoria eles deixam os peixes se reproduzir. Brasília, com um único lago, tem 7.000 pescadores recebendo o benefício!
Em 2017, o Ministério do Trabalho encontrou fraudes no valor de R$ 1,3 bilhão no seguro-desemprego.
Pente-fino em 2016 no programa Bolsa Família bloqueou por subdeclaração de renda 654 mil benefícios; convocou 1,4 milhão de famílias para averiguação cadastral; bloqueou o benefício de 13 mil famílias identificadas como doadores de campanha na prestação de contas de candidatos nas eleições de 2016; entre inúmeras outras medidas.
Em apenas um mês, revisões feitas em 5.000 beneficiários do auxílio-doença cancelaram mais de 80% dos benefícios. Há inúmeros outros exemplos.
Há dois tipos de erro em um sistema de filtros. Conceder o benefício para quem não é elegível ou recusar o benefício para a pessoa elegível. Se o sistema de filtros for desenhado para que a probabilidade de recusar o elegível seja nula, será muito suscetível a conceder ao não elegível. E esse trade-off será tão mais difícil quanto maior for a propensão das pessoas a fraudar o sistema e menor for o controle social.
Em que pesem as ineficiências da seguridade social britânica -tema que não conheço-, o fato de a humanidade não ser constituída apenas por Daniel Blakes é responsável em boa medida por sua morte.
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