segunda-feira, 10 de abril de 2017



10 de abril de 2017 | N° 18815 
L.F. VERISSIMO

Inveja

Sou um invejoso, confesso. Invejo quem sabe cantar, quem consegue dormir em avião, quem fala bonito, quem tem muitos netos, quem sabe programar um “timer”. Invejo os que têm certezas absolutas, os que têm fé e os que têm cabelo.

Mas há um tipo que eu invejo acima de qualquer outro. Um que me desperta admiração e ódio – que são os componentes da inveja – numa escala quase insuportável. É o que diz, geralmente depois de um suspiro revoltante: “Estou sem nada para ler...”.

Entende? Não é a queixa de uma privação passageira. Ele não se distraiu e deixou de se suprir de leituras como se tivesse esquecido de comprar sabão no supermercado. Não está implícita na sua lamúria uma crítica à indústria editorial e à classe intelectual, que simplesmente não produziram nada que merecesse sua atenção e são os responsáveis pelo seu tempo ocioso e a sua mesa de cabeceira vazia. Ele simplesmente está sem nada para ler. 

Enquanto eu sofro da angústia oposta, a da falta de tempo, a das pilhas de livros na mesa de cabeceira – e nas estantes e em qualquer superfície plana da casa. Minha queixa é outra: coisas demais para ler até a minha morte, marcada para 2076, se é que eu acertei o “timer”, sem falar no que ainda pretendo comprar. “Que inveja” é o único comentário cabível diante da frase do insensível.

Muitas vezes, a frase é apenas preâmbulo para um pedido de sugestão de leitura. Para: “Tens lido algo que preste?”. A pergunta pressupõe que você tem os mesmos gostos que ele e lhe dá a oportunidade de brincar de leitor casual também, sem estresse.

– Já leu o do Fernando Henrique?

– Acho que vou esperar o filme.

Mas a inveja de quem não tem a angústia dos livros esperando leitura seria mais honesta, no meu caso, se a falta de tempo não fosse culpa minha. Na verdade, tenho inveja de mim mesmo quando lia por prazer e curiosidade e não perdia tanto tempo com jornais, revistas e televisão, essas coisas que nos aproximam tanto do mundo, que roubam nossa perspectiva, e portanto nos informam e deformam ao mesmo tempo. Enquanto as pilhas de livros não param de crescer.

Culpa minha, também, porque, com tantos livros esperando leitura, não paro de aumentar a pilha. Sou um viciado em livrarias. E acho que estou chegando naquele ponto em que o prazer de comprar livros substitui o prazer de ler livros. O que é um pouco como se contentar com o aroma de um prato em vez de comê-lo. (Mencionei que também invejo quem pode comer de tudo?).

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