15 de abril de 2017 | N° 18820
DAVID COIMBRA
Meus dias no inferno
Nesses dias em que estive fora, conheci, um por um, os nove círculos do inferno descrito por Dante. Tive de passar por uma operação considerada “grande” pelo cirurgião, e quando ele me disse isso me assustei, e depois vi que tinha razão para me assustar.
Não foi recidiva do câncer que há quatro anos queria me devorar, não comemorem os odiadores. Foi algo que já existia e que devia ser extirpado e foi. Em tese, estou com saúde íntegra, embora não se possa dizer que inteiro. Foram-se saudosos pedaços de três costelas, substituídos por algo feito de um material que não sei o que é, nem pretendo descobrir o que seja.
Digo “em tese” porque, entre o nascimento e a morte, fatos sobre os quais não temos controle algum, acontece uma série de outros fatos sobre os quais acreditamos ter algum controle, mas não temos também. Ou seja: nada na vida é definitivo, tudo é em tese.
Mas vou contar um pouco do que passei, porque saber da dor dos outros às vezes nos ajuda a suportar a própria dor. Além disso, gostaria de mostrar como funciona um hospital por aqui.
É interessante.
Em primeiro lugar, os profissionais de um hospital americano têm obsessão por não errar. Pudera: um processo judicial pode ser uma catástrofe para quem perde. Assim, tudo é feito dentro de um protocolo, que precisa ser cumprido em pormenores. Porque, quando um erro é cometido, o primeiro ato dos investigadores é saber se o protocolo foi cumprido. Se alguém não o cumpriu, será responsabilizado. E punido.
Por exemplo: já na maca, na antessala de cirurgia, perguntaram-me três vezes se sabia o que o cirurgião ia fazer comigo. Na última, brinquei:
– Sei. Mudança de sexo.
A moça, primeiro, ficou perplexa, depois caiu na gargalhada. E, finalmente, me fez responder o que já havia respondido duas vezes antes.
Esse é o padrão. Uma sequência de confirmações e reconfirmações, acompanhada de informações e esclarecimentos às vezes até em excesso. Vamos tirar logo essas costelas, pô!
Tirei. Tiraram. Sofri. Acordei com dor e com dor prossegui por dias. Um troço chamado ataque espasmódico de dor, ou coisa que o valha, entrou para a minha lista de horrores, junto com os goleiros reservas do Grêmio e os políticos brasileiros que juram amar os pobres.
Esse acesso de dor é como uma cãibra absoluta. Seu corpo todo se repuxa e treme e você se transforma absolutamente em dor. Não é um ponto que dói. Não são pontos. “Você” dói. Você é dor.
Essa história de que hoje em dia os médicos conseguem controlar a dor é balela. Não conseguem. Mas tentam. Deram-me todo tipo de droga, sobretudo as baseadas em opioides, como a morfina.
A droga que mais usei foi o Oxycodone, aquela em que o Doctor House é viciado. Você toma aquilo e começa a sentir um sono irresistível. Você precisa fechar os olhos. No exato instante em que os fecha, começam as alucinações. Nada de 72 húris de olhar modesto e nenhum pelo dançando na sua frente, nada de elefantes voadores, não. Eram extensões bizarras da realidade que me provocavam mais angústia do que encantamento. Porque eu sabia que estava delirando. Sabia que, se abrisse os olhos, aquela fantasia cessaria. Só que não queria abrir os olhos devido ao sono e à própria realidade dolorosa. Ao mesmo tempo, queria abri-los, porque aqueles “sonhos” eram aflitivos. Então, depois de um tempo que calculava ser, sei lá, uma ou duas horas, abria-os. Bem na frente da minha cama havia um relógio. Era a primeira coisa que via. Tinha se passado um minuto.
Um minuto.
E toda uma novela das nove acontecera na minha cabeça.
Não sei como o Doctor House gosta disso.
Aliás, os doctors aparecem só de vez em quando, para dar uma olhadinha em você. Mas nem precisa, devido à categoria dos enfermeiros.
Aí outra diferença em relação ao Brasil. Existe uma classe de enfermeiros, num hospital americano, que simplesmente não há no nosso país varonil. Não que os americanos sejam melhores que os brasileiros. É o tipo de enfermeiro que há cá e não há lá. Enfermeiros com autoridade e vasto conhecimento, que tomam decisões, fazem prescrições. Na prática, atuam como médicos, lidando com o paciente no momento mais delicado do procedimento. O médico titular é informado de tudo por computador.
Fiquei amigo dos quatro que se revezaram para me atender, um deles meu xará. Esse David é um negão maior do que o Paulão do Inter. Sabe tudo do seu ofício, é inteligente, sério e atencioso. Tornou-se meu amigo no xadrez online e no Facebook. Um dia, quando eu sofria com prisão de ventre, causada pelos remédios, ele parou diante da minha cama, lançou-me um olhar consternado e sussurrou:
– Só há uma forma de resolvermos isso...
Olhei nos olhos dele e entendi. Gaguejei:
– Sup... Sssssup... Suppository?
Ele baixou a cabeça:
– Yes. Tudo bem?
E me mostrou um supositório do tamanho de uma banana nanica.
Não sei o que foi que fiz, sinceramente, para passar por tamanhas provações.
Os médicos, em geral, não ganham “por empreitada” como no Brasil. Eles recebem salário do hospital. Então, pouco importa se o paciente é do SUS, do plano de saúde privado, se está pagando com dinheiro próprio ou se nem pagou. A relação comercial é com o hospital, não com o médico. Os pacientes são todos iguais.
O que me valeu, neste tempo, foram os meus suportes. Dos amigos, alguns se oferecendo para vir para cá. Da família, sempre presente. Da RBS, que não é uma empresa, é uma mãe. Vários chefes me ligaram, todos dizendo a mesma frase: “Fica tranquilo, nós te apoiamos”. Numa hora dessas, trata-se de bem mais do que um alívio.
Bem. Depois de cinco dias sem comer nada, sem ver o sol ou o céu, voltei ao mundo exterior. Sentia-me saindo do presídio. Respirei o ar fresco da primavera bostoniana e me deu vontade de chorar. Não chorei. Estava com raiva. Estava revoltado.
Continuei revoltado nos dias seguintes, até que, meio vacilante, levei meu filho para brincar na praça aqui perto. Sentei-me em um banco de madeira. Olhei em volta. Olhei para cima. No carvalho plantado a quatro metros de distância, vi um esquilo entrando em sua toca no grosso galho que se espreguiçava em diagonal, na direção do céu. Fiquei observando-o. Ele sumiu no buraco e, em alguns segundos, voltou, carregando algo na boca.
Era um filhotinho. Tratava-se de uma mãe com sua cria. Com o bichinho preso nos dentes, ela caminhou pelo galho e deu um salto espetacular rumo ao caule. Escalou até um buraco mais acima, onde entrou. Esperei. Após um minuto, ela voltou, desceu pelo caule e pulou de novo até o galho. Retornou à toca antiga, entrou e saiu de lá com outro filhote. Fez isso mais uma vez. Por que estaria se mudando? Examinei as tocas e percebi que, na velha, a abertura era para cima. Na nova, para a lateral. Seria pressentimento de chuva? O dia estava tão bonito...
Aquela cena se fixou na minha mente. Voltei para casa e fiz o que havia algum tempo não fazia: um mate. Sentei-me na sacada. Notei que, ao longe, o horizonte escurecia. O tempo foi mudando. O céu escureceu. Logo, começou a chover. A esquila estava certa, pensei, enquanto voltava para a sala e fechava as janelas. Sorri, pensando nela, segura em sua toca aconchegante, com seus três filhotinhos e suas deliciosas bolotas de carvalho. Aquela ideia me fez bem. Senti que não estava mais com raiva. Não estava mais revoltado. É a vida, afinal, pensei. É a vida.
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