sábado, 15 de abril de 2017


15 de abril de 2017 | N° 18820 
L.F. VERISSIMO

Autocrítica


E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, a leste do Éden. E conheceu Caim a sua mulher, e ela... Epa. Como, “conheceu Caim a sua mulher”? De onde saiu essa mulher, se Caim e Abel (e depois Sete) eram os únicos filhos de Adão e Eva, até então o único casal do mundo? A mulher de Caim era filha de quem? Esse é o primeiro “epa” que ocorre a quem lê a Bíblia como literatura.

A própria importância dada a Caim e a sua prole (Jabal, o pai dos que habitam em tendas e criam gado, Jubal o pai de todos que tocam harpa e órgão, Tubalcaim, mestre de todo trabalho em cobre e ferro etc.) no começo do relato bíblico é intrigante. Tem-se a impressão de que Caim e seus descendentes é que levarão adiante a história das gerações de antepassados de Noé. Mas não, logo em seguida se sabe que virá da sucessão de Sete a genealogia de Noé, e Caim e seus descendentes desaparecem da história. É como se Deus tivesse escolhido um personagem para inaugurar a narrativa humana sobre a Terra, Caim, pensado melhor e mudado de ideia. Caim fica só como o primeiro assassino. Uma figura interessantíssima desperdiçada. E o maior enigma de Gênesis.

Ninguém nega a Deus a mesma liberdade de um autor de novelas para dispor de personagens de acordo com as conveniências da trama. De matar personagens e até de tirá-los do nada, como fez com a mulher de Caim. Mas a história de Noé e do Dilúvio revela um Deus ainda mais moderno e humano, e mais parecido com um escritor: um Deus com autocrítica. Poucos se dão conta (é o segundo “Epa” da leitura) de que, com o Dilúvio Universal, Deus apaga toda a primeira parte de Gênesis, que passa a servir apenas como os antecedentes de Noé, este, sim, o Adão que vale, e de sua família, esta, sim, a verdadeira inauguradora da narrativa humana sobre a Terra. Deus renega a sua obra até ali e começa outra. Estava tudo errado, e, diz a Bíblia, “arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a Terra, e pesou-lhe em seu coração”.

Foi um Deus arrependido que mandou o Dilúvio. E, quando as águas baixaram, abençoou Deus a Noé e a sua mulher, e a seus filhos e a suas noras, e disse o mesmo que já tinha dito a Adão e Eva: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a Terra”. E embora a Bíblia não conte, Deus teria acrescentado: “Certo, desta vez”.

O Deus arrependido da Bíblia ficou como precursor de todos os que decidem começar de novo, de todos os que dizem “pensando melhor” e voltam atrás e fazem melhor, ou pelo menos outra coisa, e, mais perigosamente, de todos os que dizem coisas como “é preciso um cataclismo para mudar tudo e dar um jeito neste país”. E, claro, para os escritores que deletam tudo o que fizeram, reinventam personagens e tentam outra vez, e outra vez, e outra vez...

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