04 de abril de 2017 | N° 18810
CARPINEJAR
Quem é mais dono da morte?
Vejo inventários que se prolongam por décadas, com famílias disputando judicialmente o que dividiriam naturalmente se o pai e a mãe mortos estivessem vivos.
É uma jornada perigosa e violenta, capaz de destruir o legado e manchar a harmonia de um sobrenome. Uma longa guerra de inveja e de ciúme entre crianças disfarçadas de adultos e com escudo dos advogados.
Da mesma forma como os irmãos concorriam pela atenção dos pais, pela predileção psicológica, enquanto todos existiam pacificamente, passam a brigar pela propriedade das lembranças. São filhos se odiando como nunca, sem castigo e sem cinto, selvagens no ato de possuir um imóvel ou um bem. Não pensam pelo morto, o quanto ele trabalhou para garantir paz e conforto, o quanto suou e sacrificou os seus finais de semana para assegurar tranquilidade aos pósteros. Pensam com a mesquinhez de arrematar os melhores brinquedos e as condições mais prósperas. Buscam os seus direitos e apagam os deveres familiares que continuam existindo, com ou sem os pais vivos.
Nesta conflagração de egos, a alegria de um é maior se criar também a tristeza na companhia. A satisfação cresce ainda mais ao abocanhar a maior parte e conseguir subtrair os demais dos privilégios.
Diante do falecimento do ente querido, os filhos esquecem que têm irmãos e se transformam em filhos únicos. Tem em curso uma esquisita e infeliz alienação filial.
Puxam para si as mangas da ausência da roupa maternal e paternal imitando as suas presenças durante a infância.
Tentam reconstituir em vão no colo da lei o aconchego dos abraços, mas apenas se distanciam dos manos que sofrem igual e que restaram ao lado. A partilha se converte em monopólio, a custo de isolamento e desconfiança.
Querem ser donos da morte do pai ou da mãe. Como se a morte possibilitasse algum dono. A morte é de ninguém. A morte é saudade de quem amamos, de quem nos habitará por toda a vida, independentemente de ações e liminares.
O que mais ansiava aquele que partiu era uma família unida, porém o que mais amarga com a despedida é o contrário: a dissolução dos laços. O espólio que serviria para acalmar as dores em tempos de crise é manobrado em xadrez de interesses e maquinações, em tabuleiro de vinganças e vitimizações.
Não se pretende perder o pai e a mãe pela segunda vez, agora simbolicamente para o irmão, e o herdeiro faz de tudo para manter a sobrevida moral dos falecidos.
O orgulho de filho mimado, de filho cheio de si, não permite cedências e recuos, desculpas e generosidade. Crê que será novamente enganado, pois entende a morte como uma trapaça, jamais como a grande prova de amor e de caráter moldado pela educação recebida.
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