sábado, 15 de abril de 2017




15 de abril de 2017 | N° 18820
CAPA

Duplo emprego e sacrifícios em nome dos sonhos

Luciane Vanzan, 40 anos, também só pensa em aproveitar o momento. Apenas a partir de 2014 a goleira começou a jogar sob traves de 2m44cm de altura e 7m32cm de largura. Até fazer parte do grupo do Canoas/Duda que conquistou os dois últimos títulos estaduais, Luciane havia disputado somente torneios amadores de futsal, defendo metas de 2m por 3m.

Em março, a microempresária foi convidada a fazer testes no Inter, em treinos no CT Parque Gigante, nas noites de segunda e quarta, e na Esefid/UFRGS, nas tardes de terça, quinta e sábado. Por ser dona do próprio negócio, conseguiu conciliar as atividades nos gramados a sua agenda de trabalho.

Luciane não alimenta ilusões. Tem consciência de que dificilmente receberá salários no futebol e, mesmo se ganhasse, o valor do contracheque não chegaria perto do seu faturamento na Imperlav, a pequena empresa de limpeza e impermeabilização de estofados que emprega um funcionário. A goleira cobra mais de R$ 500 pelo serviço completo em um sofá de três lugares.

Para a gaúcha de Horizontina, radicada há 20 anos na Capital, o importante é jogar bola. Um exemplo de sua devoção ao esporte: há três anos, engravidou do segundo filho. Vinte dias depois do nascimento de Bernardo, Luciane já estava em campo outra vez, em um torneio de futebol 7.

Por duas semanas, a goleira treinou ao lado de outras 38 jogadoras no Inter. Luciane acabou de fora do grupo de 22 atletas que, sob o comando da técnica Tatiele Silveira, disputará amistosos e o Campeonato Gaúcho no segundo semestre.

– Almejo pouco no futebol. Já fico feliz só por ter contribuído com o projeto do Inter e servido de exemplo para as meninas não desistirem – afirma.

Melhor sorte teve Carolyne da Rocha Capistrano, a Carol Sangue, nome de guerra da vigorosa zagueira. Chamada para integrar o elenco colorado, a jogadora de 29 anos se destaca pelo alto astral – sempre com o sorriso aberto, costuma puxar as brincadeiras nos treinos – e pela estatura: 1m79cm. Poucas colegas batem a cabeça em seus ombros. Até mesmo Tiago, casado há 10 anos com a jogadora, tem de erguer os olhos para falar com a mulher.

Cria do Partenon, na zona leste de Porto Alegre, Carol, na infância, chegava a disputar peladas improvisadas no corredor de ônibus da Avenida Bento Gonçalves, à noite, nos horários de menor movimento. Na adolescência, passou a ser vítima de bullying, resultado da preferência esportiva e do porte físico incomum da garota.

– Me chamavam de maloqueira. A mãe de uma amiga não queria que a filha andasse comigo. Achava que eu era lésbica. No fim, descobriram que quem gostava de mulher era minha amiga, não eu – sorri.

Hoje, Carol concilia aquilo que define como suas duas grandes paixões: o futebol e as crianças. Estudante de Educação Física, a zagueira é instrutora da Escola da Duda, que recebe mais de mil meninos e meninas em oito unidades distribuídas em Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo. No futuro, planeja montar sua própria escolinha.

Já a paranaense Cibele Ariane Ogioni Damaceno traça metas mais ambiciosas. Selecionada nas peneiras do Inter e aprovada nos treinos de formação do grupo, a meia-atacante de 19 anos pretende trilhar os mesmos passos da ídolo Marta:

– O maior sonho, sem dúvida, é vestir a amarelinha e depois jogar na Europa. Quero ter o futebol como profissão – afirma Cibele, que afirma ter sido aprovada em uma peneira da seleção feminina sub-17, há dois anos, mas acabou cortada por lesão.

Com passagem nas bases de Atlético-PR, Coritiba e Paraná, Cibele viu as portas fechadas em Curitiba com a desativação da estrutura de futebol feminina dos três principais clubes do Estado. Para se manter em atividade, treinava no Águia Dourada, um clube amador mantido por Diana Carla, 31 anos. Funcionária de uma empresa de impressão digital, Diana viu o anúncio da peneira do Inter e inscreveu a garota, a quem acolheu como se fosse uma “filha de coração”. No dia da primeira peneira, tirou do próprio bolso o dinheiro das passagens de ambas para Porto Alegre. Na segunda viagem ao Rio Grande do Sul, elas arrecadaram cerca de R$ 1 mil em rifas para custear as despesas.

Nos jogos das duas rodadas da seletiva, a velocidade e o instinto de artilheira de Cibele chamaram a atenção de Duda e Tatiele. Com uma bandana à la Ronaldinho prendendo os cabelos, a garota fez gols e distribuiu assistências.

Ao escutar o nome da pupila anunciado por Duda no final de tarde do dia 11, Diana irrompeu em lágrimas. Tomada pela emoção, ela também tentava controlar a angústia:

– Vou ter de encontrar um lugar para ela ficar aqui. Não temos condições de pagar a hospedagem.

A solidariedade de uma família de Gravataí pôs fim ao sofrimento. Nas longas filas da peneira colorada em Alvorada, a paranaense fez amizade com Greyce Débora, outra candidata a jogadora do Inter, que estava acompanhada dos pais. Deles, ouviu a promessa de que seria acolhida caso fosse aprovada na seletiva. Nas duas semanas seguintes, Cibele instalou-se na casa da família.

Daqui para frente, o lar da paranaense será um quarto de hotel em Porto Alegre. Ao enxergar o potencial da garota, o Inter abriu uma exceção e decidiu bancar a hospedagem dela. Sem remuneração garantida (o clube ainda estuda pagamento de um salário mínimo na carteira às jogadoras), Cibele ganhará benefícios como plano de saúde e bolsa de estudos. É pouco. Assim como suas colegas de vestiário, a promissora meia-atacante provavelmente terá de buscar alguma vaga de trabalho em outra atividade para se manter com dignidade.

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