quarta-feira, 26 de abril de 2017



26 de abril de 2017 | N° 18829 
PEDRO GONZAGA

HÁBITOS

Muitos autores da antiguidade louvaram o poder do hábito. Creio que num mundo restrito em ofertas materiais, sujeito a severas ameaças quase sempre visíveis no horizonte, esta constância que se constrói como fortaleza de muralhas invisíveis protegia-os do caos de estar no mundo. E porque o mundo não se tornou menos confuso, somos capazes ainda de entender o ganho de conforto, de forçoso sentido à existência, trazido pelas práticas repetidas. 

Há anos guardo o hábito de ler livros com depoimentos de escritores, para saber o que os levou à escrita, quais são seus truques, o que leram para terem o estilo que tem. Faço isso mais pelo gosto do costume que pelo compromisso de transmitir os ensinamentos aos meus alunos nas oficinas, para isso prefiro os manuais americanos, tão mais técnicos.

Dividir leituras em subseções me parecem um hábito que alcança quem muito leu. Porque há um primeiro leitor que lê de tudo, o diabo da tasmânia dos desenhos. Depois surge um segundo que ainda lê de tudo, mas vai estabelecendo nichos, classificações e rotinas: hoje vou ler policiais, ou livros náuticos, ou memórias de escritores. E ao visitar cada um desses lugares, recebe como recompensa uma espécie de conforto doméstico: o hábito é uma casa.

Semana passada chegou às livrarias o novo livro do Haruki Murakami sobre a arte de escrever, chamado Romancista como Vocação. Pareceu-me promissor, porque sua obra anterior no gênero exigia compreender comparações entre escrever e correr maratonas, o que me mataria do coração antes de chegar a alguma ideia sobre o assunto. Depois de algumas páginas, no entanto, fiquei frustrado. Não sei o que passou, mas o livro teve o efeito de me fazer descrer do próprio hábito.

E se me permitem uma teoria, suponho ter encontrado, enquanto escrevo, a razão de ser do hábito. O hábito é como uma seita. Não encontraremos resposta no universo, mas em um seu fragmento. A função da pequena ordem não seria, enfim, conter o caos. Seria esperar por um momento em que o caos irrompesse como experiência inteligível. Em outras palavras, um hábito espera o seu momento de destruição redentora, pois com esta destruição chegará uma resposta, pequena que seja, mas uma resposta.

O triste em perder um hábito é que isso sempre acontece com uma pergunta.

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