sábado, 29 de abril de 2017



29 de abril de 2017 | N° 18832 ANTONIO PRATA
Antonio Prata

ALERGIAS

Num restaurante em Nova York, ouço o cara da mesa ao lado fazer o pedido. “Esse macarrão oriental com frutos do mar pode vir sem camarão?” “Pode, pode sim.” “É que eu sou alérgico a crustáceo. Tem algum outro crustáceo no macarrão?” “Caranguejo é crustáceo?” “É. Tem caranguejo no macarrão?” “Não sei. Vou ver. Se tiver, peço pra tirar.” “Tirar, não! Tem que ser sem traços de crustáceo. Não pode cozinhar nenhum crustáceo na panela que for cozinhar meus frutos do mar.” “Pode deixar, senhor.” “E o macarrão é do quê?” “De arroz.” “100% glúten free?” “100% glúten free.” “Eu não como glúten faz seis anos.” “É 100% glúten free, senhor.” “Tá certo. E o arroz é orgânico?” “Orgânico.” “Local?” “Andino.” “

Fala mais sobre isso.” “Arroz orgânico andino cultivado pelos índios aimara, triturado pelos cascos das lhamas criadas totalmente soltas e alimentadas só com chia selvagem do nascimento à morte, quando são então veladas pelos antigos rituais quíchuas nas cavernas geladas de Chichuaputxan, ao som de flautinhas de bambu tocando Let it Be. “Tsc, Let it Be... Não sei... E essas almôndegas? Tem GMO no óleo da fritura?”

Por uns momentos, fiquei rindo internamente daquele pobre homem engasgado no Zeitgeist. Lembrei que uns 15 anos atrás, quando “comida” virou “alimentação”, “carne” virou “proteína” e “pão” virou “carboidrato”, meu amigo Chico comentou, sabiamente, que a gente ainda ia ver o dia em que a medicina decretaria: “Comer atrapalha a digestão”. Mas então pensei um pouquinho em mim e, contrito, me dei conta de que também sou cheio de alergias. Pude ver a cena perfeitamente, no caixa de uma mostra de cinema.

“Oi, por favor, esse Crimes e Pecados, do Woody Allen, é comédia ou é daquela fase séria?” “Comédia, senhor.” “É que eu sou alérgico à fase séria do Woody Allen.” “Parece que é comédia.” “Parece ou é? Porque quando eu vi Interiores fiquei todo emperebado. Fui insistir com Setembro e fechou a glote.” “Senhor, eu não vi o filme, mas tá escrito aí que é comédia.” “Ah, mas o pessoal escreve qualquer coisa, vê Woody Allen e já tasca ‘comédia’. 

Melhor assistir a outro filme.” “Tem esse novo do Paolo Sorrentino.” “Pao- lo Sorrentino é aquele do A Grande Beleza?” “Aham.” “Deus me livre. Tenho intolerância a Paolo Sorrentino. É igual alergia a pólen. Sinto um Paolo Sorrentino no ar, aquela morrinha de Fellini embolorado, aquela catinga de propaganda de Campari aspirando a David Lynch, é 40 graus de febre, na hora. Sorrentino, jamais.” “Antonioni?” “Hmmm. Antonioni é bom, mas é difícil de digerir, né? Antonioni e pimentão, sempre fico na dúvida...” “Tem Apocalipse Now, do Coppola.” “Genial!” “É a versão do diretor.” “Ah, não. 

A versão do diretor... Tem aquela digressão de 40 minutos sobre a presença francesa na Indochina, nada a ver com a história, tudo muito bonito, tudo muito bem filmado, tudo muito chato. Será que não dá pra pedir o Apocalipse Now, mas, no lugar da Indochina, vir esse curta aqui do Buster Keaton?” “Senhor, infelizmente nós não fazemos alterações no cardápio.” “Entendo.” “Tem Ettore Scola, também. Um Dia muito Especial.” “Lindo! Viva Ettore Scola! Sophia Loren! Mastroianni! Vê um ingresso pro Scola, por favor.” “Aqui. Ettore Scola, Um Dia muito Especial. Pipoca?” “Hmm... O óleo da pipoca é 100% sem GMO?”

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