segunda-feira, 24 de abril de 2017



24 de abril de 2017 | N° 18827 
DAVID COIMBRA

Nada é divino, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada é misterioso

São Guinefort é o santo protetor das crianças. Já foi muito popular na França, mas não é apreciado pelos líderes da Igreja Católica. Conheci sua história quando visitei Lyon, a capital da gastronomia francesa. Guinefort viveu lá há cerca de 800 anos. Vi gravuras que o representavam. Era magro, parecia enérgico e tinha pelo da cor do caramelo.

Era um cachorro.

Repare que, por essa sua condição canina, Guinefort jamais comungou ou elevou preces ao céu. O que ele fez, para merecer devoção, não foi ser devoto. Foi o seguinte: um dia, os pais de uma criança pequena tiveram de sair às pressas por algum motivo e deixaram-na sozinha em casa. Com ela ficou apenas o cachorro do casal. No caso, nosso Guinefort. Nesse ínterim, uma solerte serpente entrou na residência, rastejou até o quarto do menino e ia atacá-lo, quando Guinefort surgiu. Pôs-se, o fiel cão, a lutar com a cobra, que era de bom tamanho. Tanto Guinefort a mordeu e a dilacerou, que a cobra fugiu, e eu diria com o rabo entre as pernas, se pernas ela tivesse. A criança estava salva. O quarto, porém, ficou todo ensanguentado, e foi assim que o casal o encontrou, ao retornar de seu compromisso.

Vendo aquela cena de horror, os humanos não compreenderam nada. Ou entenderam tudo errado, que é o que useira e vezeiramente ocorre com humanos. Acharam que Guinefort havia atacado a criança e, furiosos, mataram o cachorro. Só depois do crime é que entenderam o que tinha acontecido. Contritos, enterraram o corpo do mártir Guinefort e contaram a história aos vizinhos, que contaram aos parentes e amigos, que contaram a outros parentes e amigos. Logo, o túmulo de Guinefort virou local de peregrinação e ele, se não foi beatificado, transformou-se em santo popular. Se algum francês temia por seu filho, pedia proteção a Guinefort.

Conto essa história do santo-cachorro para enfatizar o caráter pouco ortodoxo dos povos ocidentais. Nosso Deus único, importado do judaísmo, é auxiliado por milhares de santos, anjos e até protetores não oficiais, como o bom Guine. Nem o Papa sabe quantos santos tem a Igreja Católica. Uns dizem que 10 mil; outros, 20 mil.

De repente, algo, alguém ou algum lugar se torna objeto de devoção e não há o que faça o crente descrer dos poderes mágicos daquela espécie de divindade.

Nesse mundo cheio de perigos e inseguranças, as pessoas precisam acreditar no sobrenatural. É difícil ser como Belchior, que diz saber que nada é divino, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada é misterioso.

Foi por isso que, no tempo em que a peste negra grassou pelo Leste Europeu, no século 18, as pessoas, desconfiadas da incompetência dos médicos, agarraram-se aos santos. Em Moscou, houve uma santa que mereceu devoção especial, a Virgem do Portão de Vasvarsky. Os moscovitas ajuntavam-se em torno à estátua Dela para lhe beijar mãos e pés, e assim a imagem, que deveria proteger, se tornou o maior foco de propagação da peste na cidade.

Os médicos advertiram o arcebispo sobre o que estava acontecendo e ele, na melhor das intenções, decidiu tomar providências radicais. Durante a noite, mandou retirar a estátua da Virgem do Portão e a escondeu na paróquia. De manhã, quando o povo acorreu ao local santo e não encontrou a Virgem, deu-se a revolta. Furiosos, os moscovitas marcharam em busca do arcebispo, invadiram o monastério onde ele havia se homiziado, arrastaram-no para fora e, com as mãos nuas, fizeram-no em pedaços.

Não é a razão que move o povo, é a emoção. É por isso que, apesar da realidade acachapante, apesar de todos os indícios, provas e testemunhos, os petistas têm fé em Lula. É algo irracional, mas explicável. Porque as pessoas precisam da crença. As pessoas precisam acreditar em um herói, precisam acreditar em um santo. Mesmo que ele seja um cachorro.

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