quinta-feira, 6 de abril de 2017



06 de abril de 2017 | N° 18812 
PIANGERS

Quarto cheio


Adoro aquela história dos dois filhos, um pessimista e o outro otimista, cujos pais resolveram fazer um experimento. Encheram o quarto do filho pessimista de brinquedos, os melhores e mais caros jogos e bonecos e carrinhos; no quarto do filho otimista, colocaram um monte de bosta de cavalo. Quando chegou, o filho pessimista olhou todos aqueles brinquedos e começou a chorar. Não queria abri-los pois tinha certeza de que iria quebrá-los. Já o otimistinha, chegando em casa, correu para o quarto. Voltou em alguns segundos, com sorriso no rosto. Olhou para os pais e perguntou: “Cadê o pônei?”.

Eu virei essa figura que escreve sobre filhos – escrevi dois livros, foram traduzidos em três idiomas, quarto lugar em Portugal, lançaremos em Londres na semana que vem, os editores querem que eu escreva mais, mas sou pessimista. Acho que o próximo livro pode não vingar, acho sempre que alguma coisa terrível vai me acontecer profissionalmente, agora inclusive, substituir David Coimbra, imagino milhares de homens e mulheres inteligentíssimos lendo este texto e dizendo: “Quanta pobreza”. Bem dizer, concordo com os senhores. Mas voltando, como virei essa figura que escreve sobre filhos, as pessoas têm me perguntado como os filhos podem nos transformar em pessoas melhores. Ora, isso acontece o tempo todo.

Minha filha de quatro anos é a pessoa mais otimista que eu conheço. Ela pode não ser a menina mais bonita da sala, nem a mais inteligente, ela usa a tesoura com a boca aberta e não consegue jogar uma bola de vôlei pra cima e agarrá-la novamente, mas é otimista e deslumbrada e feliz com tudo o que está acontecendo ao seu redor. É o que ela sabe fazer, o que a diferencia. Fui vê-la na aula de natação esses dias: ela não dá saltos bonitos; é a única que ainda não consegue mergulhar sem colocar a mão no nariz; é lenta ao atravessar a piscina, sempre chegando entre os últimos. No fim da aula, abraçou o professor e disse: “Natação é muito legal! Acho que hoje dei show!”. O professor sorriu. No final da aula, abraçou todos os professores e alguns coleguinhas, que tentavam escapar do apertão.

Perguntamos o que ela gostaria de ganhar no Natal. “Qualquer coisa. Eu gosto de tudo”, ela disse. E disse isso sinceramente, porque realmente gosta de tudo, agradece por tudo, todos os dias abraça as pessoas e os dias. Divide seu lanche com os amigos – às vezes, com inimigos. Acredita que alguém violento pode se tornar uma pessoa boa e calma.

Acorda sorrindo todos os dias, não entendo como. Não herdou meu mau humor matutino. Não herdou meu olhar desconfiado, meu pessimismo. Me ajuda, todos os dias, a ver o mundo de forma mais positiva. Estar ao lado dela me dá até confiança em um mundo melhor. Me torna mais alegre e esperançoso.

O pessimista torce contra essa alegria toda. Ele diz: “É melhor preparar essa menina para o lado duro da vida”. Mas acredito que não. Acredito que nós, adultos, já lidamos com o lado duro da vida o tempo todo. Somos, na imensa maioria, um amontoado de promessas que não se concretizaram. Éramos astronautas, bailarinas, jogadores de futebol. Tornamo-nos assalariados, pagadores de contas, burocratas, esperando o pior para os outros, talvez para nós mesmos. Com a minha filha, eu aprendo todos os dias que posso estar sentado, chorando a dureza da vida, com um quarto cheio de presentes esperando para serem abertos.

David Coimbra está em férias. Neste período, irão substituí-lo

Marcos Piangers, Fabrício Carpinejar, Nílson Souza e Cláudia Laitano.

Nenhum comentário: