01 de abril de 2017 | N° 18808
L.F. VERISSIMO
Pffff
Não tenho mais a menor ideia de como se faz uma pipa (pandorga, em gaúcho). Eu fazia pipas perfeitas. Perdi o poder. E era um poder, aparentemente, congênito. Não me lembro de ninguém me ensinar que tipo de madeira usar, como cortar o papel, qual o comprimento certo da cauda etc. E devo ter nascido já sabendo como se faz cola em casa.
Outros poderes que eu tinha e não tenho mais dependiam de aprendizado. Você desenvolvia sua técnica nas bolinhas de gude com o tempo, jogando às brinca até se sentir habilitado a jogar às ganha. Com o tempo, desenvolvia técnicas vitoriosas para qualquer coisa, inclusive bater figurinha. Fazer funda (bodoque, atiradeira) era mais complicado do que fazer pandorga, dependia de se achar uma forquilha adequada, portanto de uma certa vivência de mato que os urbanos como eu não tinham.
Nunca fiz uma funda decente. Mas construí carrinhos de lomba com rolimãs e sofisticados sistemas de direção com cordas, produzi sons exóticos usando só o sopro e as mãos entrelaçadas imitando um pífaro, reproduzi o som de trompete com surdina usando apenas uma folha rachada, inventei umas 17 formas diferentes de futebol de mesa.
Nunca joguei botão. Meu futebol de mesa era com tampinhas de garrafa. Jogava sozinho. Por coincidência, os campeonatos eram sempre vencidos pelo time da Coca-Cola. Não, não havia interferência do imperialismo americano.
Não sei exatamente onde se vão esses poderes de infância. Desaparecem para nunca voltarem. Desconfio que haja uma barganha, um acerto entre estrelas e hormônios na regência das nossas vidas. Uma transferência de jurisdição. Trocamos a onipotência infantil pela puberdade, os prazeres da sabedoria natural pelos prazeres do corpo crescido, o poder da criação instintiva pelo poder da procriação. Não sabemos mais fazer pandorgas, mas o que é isso diante dessa maravilha, o nosso sexo, e desse achado, o sexo oposto, e da perspectiva de os dois se encontrarem?
Na adolescência também temos poderes extraordinários, mas quase sempre imaginários. O poder da sedução irresistível, por exemplo, exercido só na frente do espelho depois de botar Gumex no cabelo, mas poder assim mesmo, esperando a sua vez de ser usado. O poder de despir uma pessoa sem que ela se dê conta, só com a força da mente, ou de ficar invisível e ir atrás dela no vestiário. O poder de ser outro, como um artista de cinema ou um intelectual brilhante, em vez de um espinhento tímido. Etc, etc. E esses poderes também se vão.
No outro dia, encontrei uma folha do tipo que rachava para imitar um trompete, na infância. Achei que, se ao menos conseguisse tirar um som da folha, talvez valesse como uma retomada, não me pergunte do quê. Só saiu um “pffff”.
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