FERREIRA
GULLAR
Frases de
efeito
Quando
digo que a arte existe porque a vida não basta, estou dizendo que a arte torna
a vida mais rica
Muitos
anos atrás --e bota anos nisso-- escrevi uma série de aforismos sobre a crase e
os publiquei no suplemento literário do extinto "Diário de Notícias",
do Rio de Janeiro.
Um
deles se tornou muito conhecido, a ponto de estudantes em greve, em Curitiba, o
terem escolhido como lema de seu movimento. Estenderam uma faixa no refeitório
da faculdade: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".
Não
demorou muito, apareceu alguém para dizer que aquela frase era de Machado de
Assis. Logo surgiu outro que a atribuiu a Carlos Drummond de Andrade. Até a
atribuíram a Rubem Braga, que, numa de suas crônicas, desfez o equívoco: a
frase não é minha nem de Machado nem de Drummond; é do poeta Ferreira Gullar.
Não
sou um frasista, muito embora algumas frases minhas tenham se tornado
conhecidas. É o caso da que diz assim: "Não quero ter razão, quero ser
feliz". Até agora ainda não apareceu ninguém para atribuí-la a algum
escritor ou pensador famosos.
É
verdade, porém, que já não sou o dono dela. Foi pelo menos o que pensei quando
Cláudia, minha companheira, me trouxe de presente, no dia de meu aniversário,
um copo que comprara numa loja de Ipanema: nela estava escrita a tal frase.
Eu a
formulara, pela primeira vez, numa palestra que fiz na Flip. Falando sobre o
conflito entre palestinos e israelenses, observei que ambos os lados alegam
estarem com a razão e, enquanto isso, vêm se matando há mais de 50 anos. Acho
que eles deviam parar de ter razão --disse eu então-- e fazer um acordo de paz.
E contei também como, certo dia, minha namorada veio me encontrar para irmos ao
cinema, mas começou uma discussão entre nós, cujo desfecho foi ela pegar a
bolsa e ir embora. Eu fiquei ali, cheio de razão, mas triste para cacete. Então
disse a mim mesmo: o que importa não é ter razão, mas ser feliz.
Veja
bem, quando digo que não sou um frasista é porque não vivo de fato preocupado
em fazer frases de efeito. De fato, o que procuro é formular de maneira mais
sintética e clara possível, o que se aprende com a vida. De modo geral, as
frases de efeito, quase sempre expressam, quase sempre, uma verdade aparente ou
parcial, porque o que o frasista procura, menos que a verdade, é o efeito.
Modéstia à parte, não é o meu caso.
Por
exemplo, outra frase minha que ganhou certa popularidade diz assim: "A
arte existe porque a vida não basta". Não se trata de uma sacação de feito
e, sim, conforme creio, de um modo meu de ver a arte como algo que acrescenta à
vida o que gostaríamos que ela tivesse.
E
não é que descobriram que essa frase já tinha sido formulada por Fernando
Pessoa? Confesso que não sabia disso, mas é natural que não soubesse porque o
que li do grande poeta português foram os poemas.
De
sua prosa, lia muito pouco, mesmo porque, se admiro ilimitadamente o poeta que
ele é, não concordo com sua visão de mundo, seja espiritual, seja política. Mas
fui para a internet e terminei encontrando a frase do poeta, que diz assim:
"A literatura, como arte, é uma confissão de que a vida não basta".
É, sem dúvida, muito parecida com a minha, mas não diz a mesma coisa.
A
diferença decorre precisamente de que a minha visão de mundo não coincide com a
de Pessoa: ele era espiritualista e eu, materialista.
Quando
ele diz que a arte é "uma confissão de que a vida não basta", o que
está afirmando é que o significado da vida não se limita à realidade material
do mundo; essa realidade não lhe basta, ela só se completa com a dimensão
espiritual. A arte e a literatura --particularmente a dele, Pessoa-- são uma
confissão de que a vida só se completa no plano espiritual. A realidade
material não basta.
Minha
visão é outra e, portanto, outro o significado de minha frase. Quando digo que
a arte existe porque a vida não basta, estou na verdade dizendo que a arte
torna a vida mais rica, mais fascinante, mais encantadora. Mas essa frase não
surgiu do nada.
Na
verdade, acredito que o objetivo de arte não é, como se diz, revelar a
realidade mas, sim, reinventá-la. Quando Van Gogh pinta o quadro "Noite
Estrelada", está acrescentando aos milhões de noites reais, mais uma que
só existe em sua tela. E reinventa, assim, a noite real.
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