19
de novembro de 2013 | N° 17619
FABRÍCIO
CARPINEJAR
A orelha do Eduardo
O
melhor antídoto para a discriminação é a turma unida. Quando os colegas se
somam para uma competição, o bullying morre.
Todos
têm importância: aquele com dificuldades de matemática recebe ajuda dos nerds,
os nerds ganham aula de dança das meninas, os tontos adquirem esperteza, os
malandros se regeneram em sensibilidade.
Os
atritos de convivência são contornados pelo espírito coletivo. O grupo esquece
as desavenças pessoais e valoriza cada um dos temperamentos da sala.
Não
há deboche interno em nome de uma causa externa. Não há facções ou panelas em
favor de um objetivo em comum.
Quando
adolescente, minha turma participou de uma gincana entre as escolas de Porto
Alegre.
Os
rancores desapareceram no ato. Como a disputa elaborava charadas e pedia urgência
nas respostas, descobríamos habilidades antes inimagináveis nos nossos colegas.
Eu não sabia que Mariana entendia de nós em cordas (seu pai era oficial da
Marinha), eu não sabia que Antônio dominava potência e motor dos carros, eu não
sabia que Aline conhecia trilhas ecológicas no Morro do Osso. Nossos
preconceitos ruíram pela necessidade de resolver as questões. Ouvíamos ideias e
sugestões, desprovidos de censura.
Não
vencemos, mas nos unimos. A derrota também virou uma comemoração em equipe. A
emoção criou o milagre do entendimento: pôr-se no lugar do outro para sentir na
pele a diferença.
Eduardo
representou nossa transformação. Tinha um problema facial, uma longa queimadura
na sua orelha. A orelha mal existia. O rosto direito era perfeito e simétrico,
enquanto o lado esquerdo apresentava um rebaixamento grave.
Sara,
durante a despedida dos jogos,
no
momento em que a gente se abraçava e lamentava o resultado, caminhou na direção
de Eduardo, que estava retraído numa cadeira do fundo. Ela segurou a face dele
com as mãos e beijou – sem nenhum nojo – sua orelha derretida. Um beijo terno,
doce, honesto. Podíamos escutar o pressionar dos lábios, nos viramos para
admirar a cena, perplexos com a atitude imprevisível (Eduardo aguentava o
desprezo, a mais severa discriminação na escola; ninguém encarava sua
fisionomia, por medo).
Naquela
hora, nunca mais vi na vida alegria igual. Uma alegria de família. Experimentamos
o riso da cumplicidade, que é mais delicioso do que o riso do deboche.
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