sábado, 16 de novembro de 2013


17 de novembro de 2013 | N° 17617
PAULO SANT’ANA

Sem pular a cerca

Da vez primeira que levei um chifre, perdi um jeito autossuficiente que eu tinha. Telefonei para ela e perguntei atônito: “O que levou você a me trair? O que foi que eu fiz?”.

E ela respondeu intrépida: “Não foi pelo que você fez que eu o traí. Eu o traí exatamente pelo que você não fez. Não fez nunca enquanto estivemos juntos. Foi por isso que eu o traí: pelo que você não fez”.

E eu perguntei: “Mas o que é que eu não fiz?”.

Ela respondeu: “É que você foi sempre sincero, você nunca fingiu. E para não ser traído o homem precisa fingir muitas e muitas vezes. Eu o traí porque você nunca foi inesperado, isto é, nunca fingiu – e, sendo sempre sincero, você mostrava as suas vísceras, o que era indesejável.

Em suma, para nunca ser traído, o homem terá que trair. Ou seja, só não trai um homem quem é traída por ele. Da próxima vez que você tentar outro amor, trate de trair. Só assim o seu novo amor poderá ser-lhe fiel”.

Estou até agora mastigando a lógica excêntrica da mulher que me traiu.

O Supremo Tribunal Federal está tratando de executar as penas dos condenados no mensalão. Há réus que obedecerão ao regime fechado na prisão, há outros que observarão o regime aberto e ainda outros, como José Dirceu inicialmente, que observarão o regime semiaberto.

Foi pensando nisso que me lembrei que há 30 anos, em minha casa, eu obedeço ao regime semiaberto.

Saio no fim da manhã para trabalhar e volto no início da noite para recolher-me ao cumprimento da minha pena. Por sinal, só imploro uma coisa: que jamais me designem a prisão domiciliar. Eu não a suportaria: ser obrigado a ficar os dias inteiros em casa é um suplício que me mataria.

Está bem assim, cumpro o regime semiaberto com rara bravura. Ora saio para a rua, ora volto obrigado para casa. E me ocorre agora, depois de 30 anos de vida conjugal, que minha pena no semiaberto é perpétua, não tem condicional.

E me ocorre também que a execução penal é vigilante, sou obrigado todas as noites a recolher-me ao cárcere conjugal, não posso dormir fora do balaio punitivo, não me deixam pular a cerca e ir refestelar-me em um outro leito que não seja o que me foi penalmente designado, o do meu lar.

E assim vou cumprindo a minha sina, meu destino não muda, é monótono de repetitivo: do trabalho para casa, sem poder dar um pulinho só de traição.


E uma vida sem traição é uma vida sem graça.

Nenhum comentário: