17
de novembro de 2013 | N° 17617
PAULO
SANT’ANA
Sem pular a
cerca
Da
vez primeira que levei um chifre, perdi um jeito autossuficiente que eu tinha. Telefonei
para ela e perguntei atônito: “O que levou você a me trair? O que foi que eu
fiz?”.
E
ela respondeu intrépida: “Não foi pelo que você fez que eu o traí. Eu o traí
exatamente pelo que você não fez. Não fez nunca enquanto estivemos juntos. Foi
por isso que eu o traí: pelo que você não fez”.
E eu
perguntei: “Mas o que é que eu não fiz?”.
Ela
respondeu: “É que você foi sempre sincero, você nunca fingiu. E para não ser
traído o homem precisa fingir muitas e muitas vezes. Eu o traí porque você
nunca foi inesperado, isto é, nunca fingiu – e, sendo sempre sincero, você
mostrava as suas vísceras, o que era indesejável.
Em
suma, para nunca ser traído, o homem terá que trair. Ou seja, só não trai um
homem quem é traída por ele. Da próxima vez que você tentar outro amor, trate
de trair. Só assim o seu novo amor poderá ser-lhe fiel”.
Estou
até agora mastigando a lógica excêntrica da mulher que me traiu.
O
Supremo Tribunal Federal está tratando de executar as penas dos condenados no
mensalão. Há réus que obedecerão ao regime fechado na prisão, há outros que
observarão o regime aberto e ainda outros, como José Dirceu inicialmente, que
observarão o regime semiaberto.
Foi
pensando nisso que me lembrei que há 30 anos, em minha casa, eu obedeço ao
regime semiaberto.
Saio
no fim da manhã para trabalhar e volto no início da noite para recolher-me ao
cumprimento da minha pena. Por sinal, só imploro uma coisa: que jamais me
designem a prisão domiciliar. Eu não a suportaria: ser obrigado a ficar os dias
inteiros em casa é um suplício que me mataria.
Está
bem assim, cumpro o regime semiaberto com rara bravura. Ora saio para a rua,
ora volto obrigado para casa. E me ocorre agora, depois de 30 anos de vida conjugal,
que minha pena no semiaberto é perpétua, não tem condicional.
E me
ocorre também que a execução penal é vigilante, sou obrigado todas as noites a
recolher-me ao cárcere conjugal, não posso dormir fora do balaio punitivo, não
me deixam pular a cerca e ir refestelar-me em um outro leito que não seja o que
me foi penalmente designado, o do meu lar.
E
assim vou cumprindo a minha sina, meu destino não muda, é monótono de
repetitivo: do trabalho para casa, sem poder dar um pulinho só de traição.
E uma
vida sem traição é uma vida sem graça.
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