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segunda-feira, 31 de outubro de 2011
31 de outubro de 2011 | N° 16872
J. A. PINHEIRO MACHADO
Dirigindo um caminhão à noite sem faróis
A abertura da Feira do Livro, sexta-feira passada, e sua proximidade com a data que comemora o Dia do Estivador (dia 18 de outubro) é uma dessas coincidências que nos fazem pensar nos desígnios insondáveis do Cavalo Celeste. Há poucos ofícios tão próximos à estiva como a atividade do escritor. Quem escreve trabalha com amenidades leves como blocos de granito. Escrever é um trabalho solitário e esgotante: ninguém pode ajudá-lo ou dar-lhe conselhos nessa hora, advertia Rilke.
Uma das melhores comprovações dessa verdade está na série magnífica que Cláudia Laitano publica nesta ZH desde sábado (também em inovadora versão multimídia até o final da Feira), sobre o trabalho de uma dezena de escritores rio-grandenses.
Além das palavras esclarecedoras, as imagens não menos magníficas da Adriana Franciosi, em preto e branco, sublinham as sombras esquivas em que se esconde a inspiração, o contorno das frases, a palavra exata...
Um dos livros encontráveis na Feira, Vida de Escritor, ilumina algumas sombras desse ofício maldito, que tem mais obstinação do que glamour. Seu autor, Gay Talese, um dos meus estivadores favoritos da literatura, acredita que “escrever é como dirigir um caminhão à noite, sem faróis, errando o caminho”.
O lugar-comum diz que Talese é um dos pais do “novo jornalismo” que trata a notícia com a tinta da literatura, e que Vida de Escritor seria um truque do velho repórter, hoje perto dos 80 anos, costurando antigos textos. Não é verdade.
O livro é uma peça poderosa, escrita pelo filho que se inspira no pai alfaiate: “Ele fazia cada terno ponto por ponto, evitando o uso de uma máquina de costura, porque queria sentir a agulha em seus dedos ao trabalhar um corte de seda ou lã, e avançava a uma velocidade de lesma na costura de um ombro ou de uma manga.
Se qualquer trabalho seu não alcançava o nível que ele definia como ‘perfeito’, punha-o de lado e recomeçava. Ele esperava criar a ilusão de uma roupa inconsútil, alcançar a expressão artística com agulha e linha”. Inconsútil – exatamente na definição dessa palavra, nas páginas do incontornável Aurélio, se decifra o livro: “não consútil; sem costuras (diz-se especialmente da túnica de Cristo); feito de uma só peça; inteiriço”.
Para chegar a isso, Talese revela que os inevitáveis erros de caminho dessa sua viagem simbólica “à noite, sem faróis” custaram muito caro: “Durante 40 anos de minha carreira como escritor-pesquisador, investi pesadamente na perda de tempo”.
Quando observamos as expressões dos escritores nas imagens da Adriana, na matéria da Cláudia, testas enrugadas, olhos fixos na tela do computador tentando espiar além das palavras, ou expressões de alívio numa pausa em meio a florestas de livros, percebe-se a verdade da frase com que Gay Talese encerra este assunto: “Produzo texto com facilidade comparável à de um paciente que expele pedra dos rins”.
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