quinta-feira, 20 de outubro de 2011



20 de outubro de 2011 | N° 16861
CELSO GUTFREIND


Disparada

A canção se chama Disparada. É do Geraldo Vandré, mas ficou célebre na voz de Jair Rodrigues. A imagem serve para esta crônica sobre a criança, que também se vale da música materna para fazer o seu nome. E, quanto mais eficaz for a melodia, mais anônima ficará a mãe e conhecido, o filho.

“Prepare o seu coração/ Pras coisas/ Que eu vou contar.” A criança tornou-se capaz de narrar. Deve mesmo ter havido, lá no começo, aquela mãe cantando em tal sintonia, que o filho não precisa ser bonzinho. Pode ser verdadeiro. E acrescenta: “posso não lhe agradar...”.

Ele vai longe na arte, mas a vida não é fácil e vem mais um solavanco: “Aprendi a dizer não/ Ver a morte sem chorar”. Os versos sugerem falta de choro, liberdade para expressar-se. Mas a barreira maior vem a seguir: “A morte e o destino, tudo/ Estava fora do lugar/ Eu vivo pra consertar...”.

Freud foi pioneiro ao detectar o quanto as crianças nascem para resolver a vida de seus pais. Quando já se idealizava a infância, teve a coragem de dizer que o desejo de ser mãe e pai não começa nobre. Trata-se, no início, de uma vontade de não morrer e outra de que o filho resgate o que os pais não puderam ser. Ou seja, viva pra consertar.

Felizmente, a vida nem sempre dispara. Ela também dá um tempo para que os pais, verdadeiros responsáveis pelos consertos, possam rever seus desejos. O começo egoísta volta-se aos poucos para o outro até se tornar capaz de dizer: – Meu filho, podes ser tu mesmo e viver a tua própria história.

O processo parece complicado e é, porque se chama amor.

Na canção, ele acontece: o bebê crescido precisa assumir a boiada de um boiadeiro que morreu, mas tem a liberdade de fazê-lo só depois de aproveitar a infância. E reinar. E sonhar: “Seguia como num sonho/ E boiadeiro era um rei...”.

Seus pais entenderam uma noção afetiva fundamental: “gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente...”.

Sim, com gente é diferente: convém dar muito na largada para separar-se no meio, poder reencontrar-se durante e estar junto, por dentro, até o final. É preciso deixar ser para poder ser verdadeiro. Disparada canta: “Não canto pra enganar”.

Haja talento de ficar tão próximo, permitir crescer e depois partir a ponto de ficar maior do que a gente: “Por qualquer coisa de seu/ Querer ir mais longe/ Do que eu...”.

Para o próprio Freud, era impossível. Mas a prática também o superou. Volta e meia, vemos filhos capazes de sonhar. E serem livres para a disparada de pegar a viola e cantar mais forte noutro lugar.

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