sábado, 8 de outubro de 2011



09 de outubro de 2011 | N° 16850
VERISSIMO


A truta

O homem pediu truta, e o garçom perguntou se ele não gostaria de escolher uma pessoalmente.

– Como, escolher?

– No nosso viveiro. O senhor pode escolher a truta que quiser.

Ele não tinha visto o viveiro ao entrar no restaurante. Foi atrás do garçom. As trutas davam voltas e voltas dentro do aquário, como num cortejo. Algumas paravam por instante e ficavam olhando através do vidro, depois retomavam o cortejo. E o homem se viu encarando, olho no olho, uma truta que estacionara com a boca encostada no vidro à sua frente.

– Essa está bonita... – disse o garçom.

– Eu não sabia que se podia escolher. Pensei que elas já estivessem mortas.

– Não, nossas trutas são mortas na hora. Da água direto para a panela.

A truta continuava parada contra o vidro, olhando para o homem.

– Vai essa, doutor? Ela parece que está pedindo...

Mas o olhar da truta não era de quem queria ir direto para uma panela. Ela parecia examinar o homem. Parecia estar calculando a possibilidade de um diálogo.

Estranho, pensou o homem. Nunca tive que tomar uma decisão assim. Decidir um destino, decidir entre a vida e a morte. Não era como no supermercado, em que os bichos já estavam mortos, e a responsabilidade não era sua – pelo menos não diretamente.

Você podia comê-los sem remorso. Havia toda uma engrenagem montada para afastar você do remorso. As galinhas vinham já esquartejadas, suas partes acondicionadas em bandejas congeladas, nada mais distante da sua responsabilidade.

Os peixes jaziam expostos no gelo, com os olhos abertos mas sem vida. Exatamente, olhos de peixe morto. Mas você não decretara a morte deles. Claro, era com sua aprovação tácita que bovinos, ovinos, suínos, caprinos, galinhas e peixes eram assassinados para lhe dar de comer.

Mas você não estava presente no ato, não escolhia a vítima, não dava a ordem. Não via o sangue. De certa maneira, pensou o homem, vivi sempre assim, protegido das entranhas do mundo. Sem precisar me comprometer. Sem encarar as vítimas. Mas agora era preciso escolher.

– Vai essa, doutor? – insistiu o garçom.

– Não sei. Eu...

– Acho que foi ela que escolheu o senhor. Olha aí, ficou paradinha. Só faltando dizer “me come”.

O homem desejou que a truta deixasse de encará-lo e voltasse ao carrossel junto com as outras. Ou que pelo menos desviasse o olhar. Mas a truta continuava a fitá-lo. Ele estava delirando ou aquele olhar era de desafio?

– Vamos – estava dizendo a truta. – Pelo menos uma vez na vida, seja decidido. Me escolha e me condene à morte, ou me deixe viver. A decisão é sua. Eu não decido nada. Sou apenas um peixe, com cérebro de peixe. Não escolhi estar neste tanque. Não posso decidir a minha vida, ou a de ninguém.

Mas você pode. A minha e a sua. Você é um ser humano, um ente moral, com discernimento e consciência. Até agora foi um protegido, um desobrigado, um isento da vida. Mas chegou a hora de se comprometer. Você tem uma biografia para decidir. A minha. Agora. Depois pode decidir a sua, se gostar da experiência. O que não pode é continuar se escondendo da vida, e....

– Vai essa mesmo, doutor? – quis saber o garçom, já com a rede na mão para pegar a truta.

– Não – disse o homem. – Mudei de ideia. Vou pedir outra coisa.

E de volta na mesa, depois de reexaminar o cardápio, perguntou:

– Esses camarões, estão vivos?

– Não, doutor. Os camarões estão mortos.

– Pode trazer.

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