sábado, 4 de dezembro de 2010



04 de dezembro de 2010 | N° 16539
CLÁUDIA LAITANO


Quindim poético

É impossível não alimentar certa curiosidade sobre a vida íntima dos escritores. Em primeiro lugar, porque eles nos parecem humanos de uma categoria rara. Como uma bactéria que incorpora arsênio ao DNA, grandes escritores também criam vida a partir de matérias improváveis – e essa capacidade de povoar o mundo de criaturas imaginárias é tão fascinante quanto indecifrável.

Nossa fantasia é de que a vida cotidiana do escritor reflita, de alguma forma, a grandeza de sua obra. Se topássemos com Drummond na padaria, gostaríamos que o simples gesto de escolher um quindim viesse repleto de revelações sobre a condição humana, como sua poesia.

Queremos imaginar o quindim poético, precisamos do quindim poético, mas a poesia é a vida passada a limpo, com letra caprichada, e não o que acontece nas padarias a nossa vista.

Em uma conversa com a viúva de Jorge Luis Borges, Maria Kodama, o escritor português José Saramago quis saber, com uma dose de indiscrição e outra de tietismo literário, que palavras o mestre argentino usava para falar de amor.

Kodama respondeu que costumavam usar nomes ligados à literatura: “Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica. Ulrica vinha da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão.

Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe, e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito”. Revelando mais sobre o escritor do que sobre o homem, Kodama provavelmente deu a resposta que Saramago esperava ouvir. Um típico caso de quindim que saiu mais poético do que a encomenda.

No documentário José e Pilar, ainda em cartaz em Porto Alegre, somos apresentados a um casal bem mais convincente, amorosamente falando, do que Borges e Maria Kodama. Cada dedicatória de Saramago à mulher é um pequeno testemunho literário desse amor que veio na maturidade do escritor, como a própria literatura: “A Pilar, minha casa” (em As Intermitências da Morte), “A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar” (em As Pequenas Memórias).

Na intimidade, Saramago e a jornalista Pilar del Rio tocavam-se, como se tocam todos os apaixonados, e discutiam, como costumam discutir as pessoas que compartilham uma vida em comum – nada que lembre muito o casamento de Borges com a ex-assistente.

O que Pilar e Maria Kodama podem ter em comum é a desconfiança que ambas despertam em quem costuma ver, na mulher do grande artista, a sombra de uma aproveitadora em potencial – a menos, é claro, que ela se adapte a papéis convencionais como o da sombra silenciosa ou o da esposa traída e conformada (caso da mulher com quem Drummond foi casado a vida inteira, por exemplo).

Pilar não é etérea como uma musa romântica, tampouco submissa à fama do marido.

Feminista até a raiz dos cabelos pintados e com enorme energia para o trabalho, é tão determinada, que um dia decidiu que ia conhecer pessoalmente seu escritor favorito – e deu no que deu.

Pilar é uma mulher fascinante, e não é difícil perceber por que Saramago se apaixonou por ela. Difícil é entender por que ainda é tão difícil tolerar a imagem de uma mulher forte e independente.

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