quarta-feira, 29 de dezembro de 2010



29 de dezembro de 2010 | N° 16564
JOSÉ PEDRO GOULART


Enterrada viva

Deu no jornal. Antes de a tampa do caixão ser fechada alguém notou que havia uma réstia de vida. Tiraram dona Maria das Dores dali; e rápido como rápido se faz essas coisas – mais rápido que um sinal da cruz – levaram-na de volta para o hospital. Morreu dois dias depois, e aí, de verdade; desta vez sem sobressaltos. A ida e a vinda portanto podem ter parecido um adiamento inútil para dona Maria, portadora de Alzheimer, inconsciente – a lástima ficou com os parentes.

Mas talvez não tenha sido bem assim. Quase tiraram dois dias daquela senhora de 88. E seja com 20 ou com 100, um dia vale ouro – quem compreende isso é rei. E quem há de saber o que se passou com a dona Maria das Dores nessas horas que quase lhe foram roubadas?

Imersa na medicação, os neurônios desconjuntados, num vai e vem entre o hospital e o cemitério, dona Maria aproveitou para sonhar. Um sonho longo de memórias, fantasias e recordações. E como não sei nada dela, só me cabe imaginar.

Em primeiro, sonhou a senhora com o sol, e quase sentiu que a pele ardia, mesmo agora, naquele momento. Que falta haverá de fazer o sol! A partir do sol, surgiu a mãe, jovem como nunca – as mães saltitam na nossa memória como pipoca no azeite quente. Podia sentir o cheiro do casaco dela, lembrar de diferentes doçuras enquanto ela sussurrava uma cantiga repetida.

Um sonho é como uma teia tecida por uma aranha particular, parece aleatório, mas o desejo da aranha é capturar qualquer fragmento solto na memória. De maneira que dona Maria passou dois dias que eram seus – mas quase lhe foram roubados – tecendo sua última teia. Ao recordar que um vez dormiu na missa, por exemplo, dona Maria das Dores riu. Lembrou da fúria do padre, do castigo do pai e acima de tudo, do medo que sentiu da punição de Deus.

Mas agora não tinha mais medo. Embalada por um sonho sem enquadramentos ela se viu fluir sem roteiro, um filme de Godard. Excluiu sofrimentos, mas guardou de propósito algumas tristezas (o espinho valoriza a beleza da rosa). Percebeu a rotina do tempo, a inutilidade das queixas, a saudade infinita da infância. Distraiu-se imaginando que podia produzir uma lágrima.

Enfim, a senhora aproveitou as últimas horas – recuperadas a partir do esforço de um último suspiro no caixão – sonhando. E a vida é sempre um sonho pra trás e um sonho pra frente. De maneira que dois dias depois; de volta ao caixão adiado, mas guardado para ela, dona Maria das Dores pode finalmente acordar.

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