sexta-feira, 24 de dezembro de 2010



24/12/2010 e 25/12/2010 | N° 16559
DAVID COIMBRA


Varig, Varig, Varig

Descobri quando deixei de gostar do Natal. Foi quando pararam de tocar a musiquinha de fim de ano da Varig.

Eram dezembros dourados aqueles do Papai Noel voando a jato pelo céu. A gente ia passear à noite na Rua da Praia, eu, minha mãe, meus irmãos, minha madrinha, meus avós. Passear na Rua da Praia era um acontecimento, sobretudo à noite – crianças não saíam à noite, naquela época. Então, descíamos a Rua da Praia, as crianças correndo na frente dos adultos, os adultos chamando as crianças, os letreiros a colorir as vitrines embaraçando a nossa visão, como diria o Chico.

Um dia minha irmã derrubou um manequim e o quebrou bem no braço. Saímos correndo da loja. Não lembro bem qual loja... Casa Louro, talvez? Alfaiataria Aliança, onde trabalhou Oswaldo Rolla, o grande “Foguinho”? Na certa uma dessas Sloper da alma, como diria o João Bosco.

Aquele grande relógio da Masson, será verdade que era o relógio mais preciso do Estado, do país, quiçá do mundo, um Big Ben caboclo? Tempos depois, eu já crescido, não resistia à urgência de acertar o meu relógio com o da Masson. Tinha a convicção de que a hora da Masson era a hora “mais certa”. Mas, uma tarde, ao caminhar pela Rua da Praia, fui conferir a hora e o relógio estava parado. Quebrado. Foi um choque. Foi como se estivesse cara a cara com a decadência.

Mais ou menos por esses dias, sofri outro golpe, até mais grave: entrei na histórica, na veneranda Livraria do Globo e... cadê os livros??? A Livraria do Globo tinha virado papelaria.

Foram arrancando pedaços da Rua da Praia, foi isso que fizeram. Uma das melhores fatias, os cinemas do Largo dos Medeiros. Num deles assisti a “O Exorcista”. Vi o filme sozinho, na sessão das dez.

Quando saí da sala, batia a meia-noite, “a hora dos espíritos”, e o vento balançava os galhos das árvores da Praça da Alfândega e o roçar de folhas contra folhas produzia um ruído sinistro e eu olhei em volta e senti um arrepio na nuca e pensei nos demônios do filme e não vacilei: corri para a salvação do Bianchi, Linha 20, na ponta da Praça XV.

Um dia alguém fechou os cinemas da Rua da Praia, aqueles cinemas imensos, elegantes, em que se vendiam azedinhas no saguão de entrada. Um dia eles acabam com tudo.

A verdade é que a Rua da Praia, a rua mais importante, mais sofisticada, mais alegre, mais movimentada, mais nobre do Estado, a rua em que as mocinhas faziam trottoir nos anos 50, em que Grêmio e Inter mantinham sedes contíguas nos anos 40, em que Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha pisaram com suas botas, em que o Camelinho gritava pelo centroavante Juarez, o “Tanque”, em que o Bataclan gingava todo vestido de branco, em que eu, minha mãe, meus irmãos, minha madrinha e meus avós passeávamos no fim do ano, a verdade é que a Rua da Praia não existe mais.

Sem Rua da Praia e sem a musiquinha de fim de ano da Varig.

É por isso que não gosto mais do Natal.

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