sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
PAULO SANT’ANA | LUCIANO PERES


Histórias de sobreviventes

O assunto já foi tema de incontáveis reportagens em 2010, eu sei, mas me dou o direito, neste final de ano e início de 2011, de voltar a falar do histórico resgate dos mineiros chilenos, porque se trata, claro, do drama mais surpreendente, mais emocionante dos últimos tempos. Histórias de sobreviventes me fascinam.

É impressionante a capacidade do ser humano de encontrar soluções quando se vê confrontado pelo espectro da morte, quando encara um aparente beco sem saída. De buscar forças em algum canto escondido do corpo e do cérebro. Se a engenhosidade é um dos traços marcantes da nossa espécie, é nessas situações que ela brilha com mais força, uma supernova no céu estrelado.

Isso tudo veio a minha mente não só devido aos mineiros, mas também por causa do livro que estou lendo, sobre outro drama no mesmo Chile, 38 anos atrás, em 1972. Milagre nos Andes, do uruguaio Nando Parrado, relata o acidente com um avião nas montanhas nevadas da fronteira chileno-argentina.

O episódio é bem conhecido, até porque inspirou filmes: avião cai nos Andes; sobreviventes esperam, cada vez mais desesperados, o resgate que nunca vem, em meio ao ar rarefeito e a um frio glacial; resolvem comer a carne dos mortos no desastre, para não padecer de fome; e, finalmente, um pequeno grupo, incluindo o próprio Parrado, decide enfrentar a quase impossível tarefa de escalar os imensos picos e buscar ajuda.

Menos conhecidos são os detalhes que garantiram a sobrevivência de 16 dos passageiros – o avião levava 45 pessoas, contando a tripulação, mas muitos morreram já na queda ou nos dias seguintes, devido a ferimentos graves. São aquelas pequenas explosões de engenhosidade que representam a diferença entre a vida e a morte. Um dos sobreviventes, Fito Strauch, por exemplo, descobriu que as almofadas dos assentos do avião, amarradas aos pés com cintos de segurança ou fios elétricos, permitiam caminhar na neve fofa e profunda com mais facilidade.

Outro passageiro, Marcelo Pérez, salvou a todos ao, sabiamente, montar com poltronas, malas e neve uma parede improvisada para tapar o rombo na fuselagem do avião. Não fosse por ele, todos teriam perecido de frio já na primeira noite nas montanhas geladas. Acabaram permanecendo 72 dias nas alturas dos Andes – curiosamente, os mineiros chilenos ficaram mais ou menos o mesmo tempo sob a terra, 69 dias.

Presos a cerca de 700 metros de profundidade na mina San José, depois que desabamentos bloquearam o caminho para a superfície, os mineiros, ao contrário dos sobreviventes dos Andes, não tinham como buscar ajuda por conta própria.

Na verdade, até tentaram – um grupo procurou uma saída alternativa nos túneis, mas teve de recuar devido ao risco de novos desabamentos e de piorar ainda mais a situação. No caso dos mineiros, a engenhosidade se refletiu mais nas pequenas decisões tomadas para manter os 33 vivos até uma comunicação com o mundo exterior, como racionar zelosamente a comida.

Em fevereiro, deve estrear no Brasil um filme que conta outra história fantástica – e real – de sobrevivência. 127 Hours, dirigido por Danny Boyle e possível candidato ao Oscar, relembra o drama vivido pelo americano Aron Ralston em maio de 2003. Enquanto praticava montanhismo em um cânion no Estado de Utah, sozinho, ele ficou com o braço direito preso sob uma rocha que desmoronou.

Com pouca água e comida e incapaz de se soltar sem ajuda, dependia, para sobreviver, de um improvável acaso, ser encontrado por outra pessoa no meio do nada. As 127 horas do título dizem respeito aos pouco mais de cinco dias que Ralston – interpretado no filme pelo ator James Franco – levou para tomar a decisão terrível que salvaria sua vida: cortar fora a parte inferior do braço direito e se libertar da rocha.

Fico pensando se, na mesma situação, eu teria a coragem e o sangue-frio para fazer a mesma coisa. E você? Aliás, teria eu coragem, em uma situação semelhante à dos sobreviventes dos Andes, de recorrer ao canibalismo, um tabu milenar, uma ideia cuja simples menção revolta o estômago e a mente?

No final das contas, talvez seja impossível dar uma resposta a essas perguntas em termos hipotéticos. Talvez uma resposta verdadeira só surja em situações-limite, como as vivenciadas pelos uruguaios acidentados nos Andes, pelos mineiros do Chile e pelo americano Aron Ralston.

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