terça-feira, 21 de dezembro de 2010



21 de dezembro de 2010 | N° 16556
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Patópolis

Há um território da cultura ocidental moderna que é nosso íntimo conhecido e impossível de conhecer com o corpo: Patópolis. Cidade imaginária da infância, lá vive uma população imprecisa de patos e cachorros, todos falantes, todos humanizados.

Tio Patinhas, por exemplo: é lá que vive, é lá que está o grande cofre onde repousa da famosa moeda número 1, a origem de todos os incontáveis metros cúbicos de moedas e cédulas que abarrotam as caixas-fortes em que o dono mergulha para revigorar-se.

As novas gerações ainda conhecem Patópolis? Não sei responder, mas parece que ela não tem mais a enorme presença que teve para nós, crianças do tempo da Guerra Fria. Para quem cresceu entre os anos 1950 e os 70, as ruas, as casas, as vizinhanças de Patópolis eram familiares.

Para mim, me dou conta agora, era fascinante conhecer o pequeno cotidiano dos personagens que protagonizavam as histórias: ver a mesa e a louça em que comiam Huguinho, Zezinho e Luisinho; ver as janelas floridas da casa da Margarida, a eterna namorada do Pato Donald; ver a entrada da escola e a feição das calçadas.

Tudo isso está entranhado na memória de milhões de nós, agora adultos irremediáveis sem chance de voltar a viver naquele universo que nem mesmo a severa crítica feita por Armand Mattelart e Ariel Dorfman, no livro-bomba setentista Para Ler o Pato Donald (com edição corrente, pela editora Paz & Terra), conseguiu arrancar de nossas entranhas.

Mas um ótimo livro recente repõe em circulação esse discutível mas irrecusável patrimônio da nossa geração: Patópolis, de Marcelo Coelho (editora Iluminuras). Como descrever o jeitão do texto? É uma mistura improvável de memória de geração, relato de leituras, ensaio à moda de Montaigne e exame analítico racionalista.

Uma composição estranha de ler, para a qual não há bússola evidente; um texto que não se acomoda em qualquer dos escaninhos já conhecidos na prosa brasileira; uma viagem que vale a pena acompanhar, com espírito livre e inteligência alerta.

O texto arranca de uma cena lida em um dos tantos livros de histórias em quadrinhos envolvendo o mundo patopolitano: dia de calor, Donald entediado, os sobrinhos enchendo sua paciência, uma mosca completando o cenário; Donald senta em sua poltrona predileta e tem nas mãos um livro, cujo título se deixa ler claramente: Contos Chatos.

Chatos? Mas por que chatos? Era assim no original ou foi uma liberdade do tradutor, para enfatizar o tédio da cena?

Marcelo Coelho perseguirá esta questão e incontáveis outras, com pertinácia em que se confundem certo espírito científico com indagação metafísica e volúpia memorialística, cultura letrada exigente e gosto pelo mundo pop, tudo considerado no horizonte dessa inquietante pertença de nós todos ao mundo da cidade dos patos. Livro estranho e excelente.

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