terça-feira, 28 de dezembro de 2010



28 de dezembro de 2010 | N° 16563
MOACYR SCLIAR


Dilma, leitora

Lula passará para a história como um líder carismático, de imensa popularidade. Mas não como leitor. Em parte por causa de seu passado humilde, não chegou a se familiarizar com os livros. E também não era muito de ler jornais nem revistas, mas aí por outra razão: davam-lhe “azia”, certamente por causa das críticas. Já a presidenta (presidenta, sim; ela tem o direito de escolher a palavra que designa o seu cargo) Dilma nunca foi muito popular nem carismática.

Mas, e ao contrário de seu antecessor, é uma grande leitora (como, aliás, Tarso Genro, que tem uma bela carreira como crítico, inclusive aqui em ZH). Numa entrevista recente, Dilma falou de suas preferências literárias, que começaram por Monteiro Lobato, Jorge Amado, Machado de Assis, e se expandiram para incluir Marcel Proust, Fernando Pessoa, Cecilia Meireles, João Cabral; incluem também o japonês Bashô, inventor do haicai. Um elenco de autores para ninguém botar defeito, um apreciável minicânone literário.

Partilho com ela uma preferência: a poesia da norte-americana Emily Dickinson (1830-1886), cuja obra descobri na pequena cidade de Amherst, Massachusetts, onde ela viveu e onde fui professor visitante na universidade.

A casa em que morou, transformada em museu, informa muito sobre sua vida, extraordinária, e sua obra, idem. De família rica, Emily era considerada excêntrica, e de fato, vestia-se de branco, não se casou, não teve filhos, fez poucas amizades (em geral através de correspondência) e, no fim da vida, não saía do quarto.

Escrevia sem cessar, mas não publicou mais que uma dezena de seus quase 1,8 mil poemas, redigidos de forma peculiar: usava, como vocês já verão, muitas maiúsculas e muitos travessões, estes conferindo aos versos um ritmo ofegante, por assim dizer.

A morte era um de seus temas prediletos. Um de seus poemas mais famosos, e comoventes, começa com a frase “I died for Beauty” e que aqui vai, em tradução de José Lira (sobrenome que condiciona destino) para a Editora Iluminuras: “Morri pela Beleza – e em minha Cova/ não me sentia a gosto/ quando Alguém que morreu pela Verdade/ à Cova ao lado chegou –/ Indagou gentil por que eu viera – / E eu disse – ‘Pela Beleza’ –/ ‘Eu vim pela Verdade – a Mesma Coisa–/ Somos irmãos’ – respondeu./ E quais Parentes juntos numa Noite/ Conversamos nos Túmulos – / até que o musgo chegou aos nossos lábios/ e nossos nomes cobriu”.

Estes poucos versos criam um clima onírico e reúnem três grandes temas, a morte, a verdade e a beleza; temas em torno aos quais gira nossa existência. É particularmente tocante a afirmação de que verdade e beleza, o raciocínio e a emoção, a realidade e a imaginação são a mesma coisa. Um conhecimento fundamental para quem vai lidar com seres humanos, na política inclusive.

Se depender da bagagem literária, Dilma Rousseff está começando uma grande gestão. De algum lugar, Emily Dickinson torce por ela.

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