sábado, 18 de dezembro de 2010



19 de dezembro de 2010 | N° 16554
VERISSIMO


Cinzas

Elas seriam espalhadas ao vento de uma colina do sítio Campos da Florinda

O doutor Alberico tinha pedido para ser cremado. Ainda no velório, a família discutiu o que fazer com as cinzas. A viúva sugeriu aos filhos que as espalhassem no sítio onde o Alberico gostava de passar os fins de semana, quando não estava viajando.

Até se lembrava vagamente de tê-lo visto apontar para uma colina e dizer que queria que suas cinzas fossem lançadas ao vento dali, bem dali. A viúva não se lembrava qual era a colina exatamente o pedido do marido fora feito anos antes, quando ele ainda estava ativo, ainda viajava quase todas as semanas para Curitiba , mas o vento saberia para onde levar as cinzas do Alberico.

Todos concordavam? Todos concordaram. As cinzas seriam espalhadas ao vento de uma colina no sítio. A que Alberico dera o nome da sua mulher, Florinda. Campos da Florinda. Ali onde ele encontrava a paz longe da cidade e das viagens, suas cinzas também encontrariam a paz, para sempre.

Uma mulher aproximou-se da viúva, no velório. Florinda preparou-se para receber um abraço, mas a mulher não lhe deu um abraço. Era mais moça do que Florinda, mas não muito. Em vez de dizer “meus pêsames”, disse: – Eu sou Curitiba. – O quê? – Quando o Alberico ia para Curitiba, era para se encontrar comigo. – O QUÊ?! – Não faça escândalo. Você desconfiava, não desconfiava? – Eu sabia que ele aproveitava as viagens para se soltar. Para ter mulheres. Muitas mulheres. Mas não uma. Várias Curitibas, não uma Curitiba só. – Eu era a única. Ele sempre foi fiel.

Quando o marido viajava, Florinda dizia, brincando: “Vê lá como você vai se comportar em Curitiba, hein?”.

E ele: “Meu bem, Curitiba é a cidade mais bem comportada do Brasil”.

Também brincando.

– O que você quer? – Cinzas. – Como, cinzas? – Tenho direito à metade das cinzas dele.

– Eu não acredito! Legalmente, você não tem direito algum. – Legalmente, não. Moralmente, sim. Ele passava metade do tempo comigo. – E o que você faria com as cinzas dele? – Ele pediu que as jogasse da janela do nosso apartamento em Curitiba, ao pôr do sol, ao som de um adágio de Albinoni. – Albinoni? – Ele dizia que o nosso apartamento era o único lugar em que ele encontrava a paz. – ALBINONI?!

Concordaram em um terço das cinzas para Curitiba, dois terços para Florinda. Que durante toda a viagem de carro para o sítio, com a urna ao seu lado, foi pensando: “Albinoni, Albinoni... Como a gente não conhece as pessoas...” Só quando chegaram ao sítio ela se deu conta de que deixara a urna com as cinzas do Alberico no banheiro da churrascaria em que tinham parado no caminho.

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