quinta-feira, 30 de dezembro de 2010



30 de dezembro de 2010 | N° 16565
PAULO SANT’ANA | ROSANE TREMEA - INTERINA

Culpas e desculpas

Flagrada saindo às pressas do trabalho no início da noite, fui interpelada por um colega. Parecia que eu corria para um compromisso inadiável, imprescindível, intransferível.

Para mim, era mesmo. Jejum de cinema me causa uma curiosa síndrome de abstinência. E, ainda que goste da tranquilidade das sessões caseiras, minha síndrome é a do ritual.

Pois é, corria para ir ao cinema, atendendo ao convite de um grupo de amigas e surpreendi meu colega e a mim mesma ao responder à óbvia pergunta:

– Que filme vais assistir?

Silêncio.

– Não sei.

Eu não sabia. Só tinha aceito o convite. Ia sem saber a que filme assistiria. No caminho até o cinema, cheguei a temer por aquelas duas horas. Da última vez em que entrei sem ter noção do que veria, o diretor da produção escolhida resolveu um conflito jogando uma vaca de um avião sobre uma mesa de banquete de casamento. Desde então, prefiro eu mesma fazer minha seleção cinematográfica.

Àquela altura, já não havia tempo para arrependimentos. Fui.

Não vou contar o filme nem fazer a crítica do dito cujo – há gente mais capacitada por aí para tanto.

Sentimento de Culpa é daqueles filmes despretensiosos, que mostram cenas do cotidiano, conflitos pessoais, familiares. E cujo título é justificado pela onipresença do sentimento vivido pela protagonista, Kate (Catherine Keener).

Pois como não sentir culpa quando você espera pela morte da vizinha para poder tomar posse de seu apartamento ou vive de comprar e vender móveis e objetos de família de pessoas recém partidas desta para uma melhor?

Kate, casada e com uma filha adolescente, tenta expiar sua culpa por esses e por todos os males da humanidade o tempo inteiro. Sem sucesso.

Nos dilemas éticos impostos pelo filme de Nicole Holofcener, impossível não nos confrontarmos com nossos dilemas diários, nossas culpas e desculpas para tudo. Muitas delas desfilaram em frente à tela.

Lembrei, por exemplo, do meu início de semana. Saí cedo, na manhã de segunda, porém ainda assim atrasada. E, de repente, o trânsito parou. Não era um engarrafamento qualquer, cada vez mais comum na cidade. Era um acidente. Quando finalmente consegui me desvencilhar dos outros carros, vi as duas ambulâncias. Acreditei que fosse grave, avisei a reportagem do jornal. E segui adiante.

Não que eu devesse parar para ajudar, nem havia lugar para fazer isso ali, e o socorro me pareceu rápido e eficiente. Não senti culpa por isso. Senti culpa por até agora sequer ter me preocupado em saber o nome da pessoa, que acabou morrendo no atropelamento, descobri depois.

Senti culpa por, naquele momento, me preocupar apenas com meu atraso. Por ter seguido meu dia como se nada tivesse acontecido, por ter só me concentrado no fato jornalístico e da forma mais fria possível.

Quem era a pessoa, que sonhos tinha, que fardos carregava, o que planejava para 2011? Não sei, não procurei saber.

Não vou, como a Kate do filme, me penitenciar por todos os problemas da humanidade, os próximos e os distantes. Mas prometi para mim mesma prestar mais atenção ao mundo à minha volta. É um atestado de culpa, e uma resolução de ano-novo.

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