sábado, 18 de dezembro de 2010



19 de dezembro de 2010 | N° 16554
DAVID COIMBRA


Tantas vezes porco, tantas vezes vil

Há um poema lindo de Fernando Pessoa, dentre tantos poemas lindos de Fernando Pessoa, que se intitula “Poema em Linha Reta”. Assim:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que, quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Tenho pensado nos versos de Fernando Pessoa nesses dias de dor dos colorados. Porque os colorados estão sofrendo tanto, estão cevando tanto sua dor, que parece que nunca nenhum outro clube suportou suas vergonhas. Parece que todos, à exceção do Inter, não foram senão príncipes na vida. Nada disso. A vida é cheia da angústia das pequenas coisas ridículas, é cheia de enxovalhos. É cheia de gente que, quando a hora do soco surge, agacha-se para fora da possibilidade do soco.

O perigo da imitação

Sei de gremistas que tentaram imitar a comemoração do goleiro do Mazembe e que se machucaram com certa gravidade.

Não é fácil fazer aquele malabarismo glúteo. Há que se dispor de nádegas adestradas e, sobretudo, guarnecidas com bom estofo.

O povo africano, é sabido, tem tradição de povo bem fornido de músculos glúteos.

A palavra bunda, já contei, vem do “bundo”, denominação de uma língua e de uma etnia que viceja em grande parte da Mãe África. Esses bundos, eles eram dotados de vastas e redondas e protuberantes nádegas, o que muito agradava aos portugueses e continua agradando aos brasileiros em geral.

Bundas, pois, são coisas africanas. Natural que o goleiro mazembrino as empregasse naquela comemoração que encantou o mundo, mas que, advirta-se, não deve ser repetida em casa.

Razões para sofrer

Li um livro sobre suicidas, certa feita. Psicólogos escrevendo sobre pacientes que tentaram se matar – alguns, inclusive, bem-sucedidos.

Dentre esses, chamou-me a atenção um adolescente que tentou o suicídio porque seus tênis eram inferiores aos dos amigos. Queria se matar por causa de um par de tênis!

Parece fútil. Parece irrisório. Não é. Ao menos não era para ele. Como dizia Caetano, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.

Eu aqui, o único clube de futebol do qual já fui sócio foi o Zequinha, que fica perto do IAPI e do qual meu avô era simpatizante. Mas nunca usei camisa de time na rua, nunca viajei atrás de time e nunca houve um ano em que eu fosse a 10 jogos de qualquer time, salvo por motivos profissionais, naturalmente.

Logo, eu jamais passaria uma noite insone por causa de um time de futebol. Mas compreendo a dor dos colorados, assim como compreendo a dor daquele rapaz que tentou se matar porque seus tênis serviam de chacota para a turma de amigos.

Não existe tabela de valores para o sofrimento. Mas existem níveis de realidade. O futebol é só um jogo, mesmo que movimente milhões de dólares, mesmo que empregue milhares de homens. Um jogo é uma brincadeira, nada além disso. Serve para se divertir. Serve para se distrair. Mas, se produz sofrimento em excesso, já não serve para mais nada.

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