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quinta-feira, 4 de março de 2010
04 de março de 2010 | N° 16264
LETICIA WIERZCHOWSKI
Apontamentos sobre um verão
O calor não parece dar mostras de arrefecer, e os marços aqui da nossa cidade costumam ser bastante cruéis; porém, de certa forma, o verão, com suas tardes lânguidas e suas noites estreladas, se foi para mim.
As aulas recomeçaram, e outra vez transfiro meu computador e meus desorganizados rascunhos para essa abafada Porto Alegre, onde volto a escrever com vistas à minha janela rodeada de sisudos prédios de mármore e granito. O céu azul apequenou-se novamente, e agora é um quadrado por onde o meu pensamento dá curtas voltas, entre uma linha e outra.
Do verão que passou, ficaram algumas lembranças que ora visito. A caminhada sob um tormentoso céu de fevereiro, e Caetano Veloso cantando Terra no meu ouvido. A recém-descoberta coragem do meu filhinho pequeno nas bravas águas marinhas, e o conhecido excesso de coragem do meu filho mais velho. Uma garrafa de vinho e uma noite cheia de estrelas na melhor companhia.
O pássaro que entrou numa das frinchas da nossa porta corrediça e ali morreu, coitadinho, infestando depois a casa com um cheiro nauseabundo que nos agastou por uma semana inteira. O banho de chuva num domingo com os amigos, e a alegria das crianças quando a comida finalmente ficou pronta. A felicidade de ver meu filho refestelado no sofá da sala, lendo até muito tarde, enfeitiçado com as aventuras do bruxinho Potter. A rosa branca no jardim.
Dois filmes: Invictus e O Segredo dos Seus Olhos (ótimo argentino que concorre ao Oscar de melhor estrangeiro). Um conto: Os Amigos dos Amigos, de Henry James. Um vinho rosé: Familia Gascón.
Um piquenique na beira do mar, e a fome insaciável do meu filho mais velho. Antigos biscoitos polvilhados com açúcar cristal, como aqueles que eu comia na casa da tia Eulália quando eu era pequena.
Uma ressaca no mar, e a praia coalhada de piche. Depois o algodão embebido em azeite, e a faxina nos pés de todo mundo, o que me fez recordar meus velhos verões em Cidreira, quando limpávamos o piche nas pedras ásperas do pátio.
Ah, aquele pátio para sempre perdido nos anos, e as suas rosadas lajotas quentes de sol… Um delicioso romance com final um tanto azedo: Os Espólios de Poyton, Henry James outra vez. Flores para Iemanjá, e os meninos correndo à beira-mar, tarde da noite.
Uma novela perfeita: A Pérola, John Steinbeck. Uma inusitada trilha sonora de rasgado romantismo (para ouvir depois daquele vinho rosé): Cauby cantando Roberto Carlos. E o riso vermelho de morango do meu filho pequeno chupando seus primeiros picolés na areia. De tudo isso foi feito um verão.
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