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quarta-feira, 3 de março de 2010
03 de março de 2010 | N° 16263
DAVID COIMBRA
A luz que se apagou
O meu amigo Salim Nigri morreu. Era um amigo peculiar. Devo tê-lo visto umas quatro ou cinco vezes em duas décadas, mas nos falávamos semanalmente. Houve época em que ele me telefonava todos os dias.
Gostava de conversar com o Salim. Ele tinha uma voz que acalmava. Vou fazer agora uma confissão. Um dia, um sábado de inverno, eu sentia muito cansaço, mas, de tão agitado, não conseguia dormir.
Não havia passado bem a noite, o almoço me caíra mal, eram já duas ou três da tarde e continuava agitado. Então, sabe o que fiz? Estendi-me na cama, a nuca apoiada ao travesseiro, tomei o telefone do criado-mudo e liguei para o Salim.
Aleguei que pretendia escrever um texto sobre qualquer coisa relacionada com os anos 40 e pedi que me contasse uma de suas histórias. Ele começou a falar com aquela sua voz grave e melodiosa, escandindo as sílabas com sonoridade, pronunciando cada palavra como se declamasse um poema.
A voz dos velhos homens de rádio, uma voz que foi se me derramando ouvido adentro e me aplacando a alma, e logo me senti repousado e satisfeito, e me despedi do Salim, e submergi em um sono restaurador.
Mesmo quando o Salim me alcançava no bulício da redação, mesmo quando me achava premido pelo tempo para entregar a coluna ao editor, mesmo assim parava para ouvi-lo. Não por condescendência.
Porque falar com ele era bom.
Bom. Eis um adjetivo singelo, mas que resume à perfeição quem era o Salim. Tratava-se de um homem bom. Ele poderia ter sido um ressentido com a vida. Afinal, jovem ainda, com vinte e poucos anos, a visão foi se lhe embaçando devido a uma doença incurável, até que, por volta da década de 60, a escuridão o envolveu para sempre.
Nunca mais Salim viu o azul do céu, do mar, dos olhos de certas mulheres perturbadoras e, sobretudo, do Grêmio, a grande paixão da sua vida.
“Com o Grêmio onde estiver o Grêmio”, escreveu ele em uma faixa levada para as arquibancadas de madeira da antiga Baixada em 1946. Sete anos depois, Lupicínio Rodrigues tomou a frase emprestada e, com a sensibilidade dos poetas imortais, aplicou-lhe uma torção tão mínima quanto genial, incrustando-a no hino do clube: “Com o Grêmio, onde o Grêmio estiver”.
Era o suficiente para Salim entrar para a história, mas ele fez muito mais. Mudou a forma de os gremistas torcerem, ajudou a colorir os estádios e, mais importante, portou-se, sempre e sempre, com cordialidade e bom humor, inclusive, e principalmente, diante dos adversários. Enfim, portava-se com esportividade, predicado que nem todos os esportistas possuem.
Salim brincava com algum eventual fracasso do Grêmio, brincava com as vicissitudes da vida, brincava com a própria cegueira. Uma vez comentou, rindo:
– Não entendo por que todo mundo que vai falar comigo pega no meu braço. Eu não consigo é ver; andar eu consigo!
Numa noite de 1975, Salim esperava pela filha em uma rua do Centro. Um ladrão se aproximou por trás e afanou-lhe a carteira. Horas depois, o Grêmio venceu um Gre-Nal por 3 a 1, três gols de Zequinha, encerrando uma invencibilidade do Inter de quase três anos.
No Gre-Nal seguinte, Salim postou-se na mesma rua, com a carteira recheada bem à vista no bolso de trás, esperando que o ladrão da sorte aparecesse para roubá-la de novo. Valia perder uns trocados pela vitória do Tricolor.
Há alguns meses, o Salim contou que tinha acabado de retornar de um exame do coração.
– E como foi? – perguntei.
– Meu coração está ótimo. Em grande forma.
– Parabéns!
– Parabéns por quê?
– Pela saúde do teu coração, ora!
– Devias me dar os pêsames – zombou. – Porque isso significa que não vou morrer do coração, mas de todas aquelas outras doenças intermináveis, que fazem a gente sofrer. Estava torcendo era para ter um enfarte!
Salim não morreu de enfarte. Mas também não foi torturado por uma doença de longa duração. Teve uma morte suave e indolor. Um dia, simplesmente fechou os olhos e não os abriu mais. Aqueles olhos por tanto tempo apagados, que, agora cerrados para sempre, deixam o mundo que enxerga com um pouco menos de luz.
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